quinta-feira, 14 de agosto de 2008

SOBRE O JORNALISMO ACREANO

Não estou entre os que culpam os jornalistas acreanos pelo tom monocórdico das notícias que circulam na nossa imprensa seringueira.

Trabalhei demais nas redações de Rio Branco para saber que esse ponto de vista é só mais uma manifestação do velho preconceito de classe social. Preconceito cuja ambição histórica sempre foi culpar os trabalhadores pelos conchavos dos patrões.

É evidente que o jornalismo praticado no Acre poderia melhorar, e muito, mas esta melhoria passaria necessariamente pelo aprofundamento da cobertura sobre a realidade do povo acreano: suas lutas, histórias, aventuras e sonhos. Pela vida coletiva como construção diária.

Acontece que - e a chamada "classe dirigente" do Acre sabe disso - toda uma epopéia de esforço humano contra o abandono e a manipulação política viriam à tona. Antigos mitos seriam desconstruídos. Vários discursos, desacreditados. Diversas promessas, desmentidas.

Esse jornalismo não seria agradável para os que sempre dependeram do dinheiro público e às custas dele ergueram uma imagem social de grandes empresários, homens empreendedores e de visão quando, na verdade, jamais passaram de atravessadores da máquina pública. Foram e são regatões da classe política, que por sua vez sempre viu na imprensa mais uma forma de manter a sociedade cindida o suficiente para tirar a melhor vantagem possível.

Um jornalismo crítico revelaria, por exemplo, que essa divisão entre dominados e dominadores é uma estratégia de dominação coletiva que remonta às origens do próprio Acre com a migração forçada de nordestinos em várias frentes promovidas pelo poder público. Divisão que foi mantida no isolamento dos seringueiros na vida política acreana, e, com o fim da economia da borracha, pelos incentivos ao grande latifúndio rural que produziram as favelas de Rio Branco.

Diria ainda que da redemocratização do país até o fim da década de 90 essa estrutura se nutriu dos vários e polêmicos programas assistencialistas que distribuíram leite, sopas, mingaus e outros donativos para "os mais pobres". E que a atitude paternalista de "proteger os mais fracos" acentuou ainda a enorme dependência, inclusive moral, em relação a um governo centralizador, autoritário e muitas vezes corrupto.

O resultado foi que o aprofundamento das classes sociais tornou-se ponto pacífico como imperiosa necessidade para a preservação da "lei e da ordem" econômica.


Um jornalismo com memória histórica lembraria que foi graças a isso que, nas cidades acreanas, ser chamado de "seringueiro" virou ofensa, motivo para briga. Seringueiro era demodé, ultrapassado, miserável. O barato era ser classe média, ainda que às custas do sangue, suor e lágrimas dos contribuintes de uma máquina estatal usada como moeda para negociar com patrocinadores de campanha e apoios partidários.

Lembraria também que no final da década de 90 essa conjuntura política doentia, pura arte do favoritismo e clientelismo, atraiu vozes progressistas reivindicadoras de um discurso ético. Em 1998 elas acabaram por pavimentar o caminho para uma monarquia cabocla cujas marcas seriam o totalitarismo e a incontestabilidade.

Daí pra frente todos os jornalistas sabem, inclusive os "focas". Ao chegar ao poder a tal monarquia cabocla não apenas cumpriu o fatídico papel que lhe preparou a História (os "fantasmas do passado" de que fala Karl Marx) como mostrou-se fruto dessa mesma História ao instrumentalizar em benefício próprio todas as instituições e vozes progressistas das quais se formou.

Assim o caráter vertical, autoritário e centralizador das classes dominantes acreanas manifestou-se novamente, reinando plena e livremente por oito anos seguidos. Oito anos em que toda a herança histórica de centralização da política, subserviência, assistencialismo e divisão social entre senhores e servos, líderes e liderados, rei (com toda a sua corte) e súditos vicejou em um ambiente de ódio mortal a qualquer debate com direito ao contraditório.

Sindicatos foram cooptados, conselhos aparelhados e movimentos sociais, marginalizados.

É evidente que debates com direito ao contraditório se fazem na imprensa, mas a própria imprensa paga o seu tributo à herança e à conjuntura histórica na qual está inserida. E em nossa época esse tributo é caro demais: a imprensa é também empresa e como tal possui interesses comerciais como qualquer outra.

O resultado é o atrelamento atual ao poder público, que no caso do Acre torna-se ainda mais grave pelos motivos acima citados. Ao submeter-se ao seu maior cliente, a imprensa apenas confirma a sua inescapável e histórica posição de classe social: a classe dominante.

E o Estado, o que ganha? Ganha um poderoso aliado na tarefa de manter quietos e passivos os espíritos porventura rebeldes. Não é por outro motivo que traficantes, assaltantes, estupradores, homicidas e outros são mostrados na nossa imprensa completamente destituídos do processo social que os gerou.

São meros acidentes da organização social, pessoas que desobedecem à lei. Não são vistos - não interessa fazê-lo - como a herança macabra de um desastre sociopolítico: a superexploração humana que bem antes das favelas (ou "bairros periféricos", no jargão jornalístico rio-branquense) gerou a violência consentida e muitas vezes produzida pelo Estado para manter-se no papel de grande ditador.


Foi nesse contexto que Distrito Policial virou Unidade de Segurança Pública (USP). Presidiário virou reeducando. E os velhos cadernos de Polícia dos jornais impressos - costume tão antigo quanto inútil da imprensa em geral - foram renomeados para Segurança Pública por determinação governamental...

Diante desse quadro o jornalista acreano nada pode fazer, ainda que alguns se empenhem em pensar o contrário. Claro, qualquer um pode bater de frente com o editor-chefe ou o dono do jornal e acabar obviamente demitido, como ocorreu com este que vos escreve.

Entretanto, esse pré-demissionário deve lembrar-se que jornalista no Acre não tem autonomia para escrever o que quer. Não há como denunciar as filas da Fundhacre ou a violência da COE a um grupo de sem-terras sem ser chamado ao gabinete do chefe para ouvir um longo sermão sobre "a crise da empresa", "falta de repasse do governo", "vestir a camisa" ou algo que o valha. Isso, é claro, antes da matéria ser censurada - leia-se: retirada da edição.

Se algo eventualmente dribla a censura é ainda pior. Por duas vezes este que vos escreve foi chamado ao gabinete da floresta para "explicar melhor" matérias que não agradaram a Exma Excelência Grisalha. As conversas foram desagradáveis e o jornal publicou desmentidos oficiais nos dois casos, com escabrosos ERRAMOS na primeira página.

Mas há histórias bem mais interessantes por aí, principalmente entre aqueles que ousam filmar "o que não devem". Há casos de jornalistas suspensos, afastados ou simplesmente censurados sistematicamente até abandonarem o ofício. Muitos desabam e desenvolvem doenças psíquicas severas e terceiros acabam se rendendo, tornando-se amigos desse sistema doentio.

Evidentemente nem sempre há intenções nem histórias puras entre esses grupos e nem eu peço que um futuro historiador, ao analisar essa época de trevas, seja pouco rigoroso ao analisá-las. Só espero que o mesmo perceba como a conjuntura histórica acreana propiciou o surgimento de um jornalismo atrelado a uma política de controle vertical, totalitária, cínica e mafiosa.

No presente, só lamento que alguns entre os que - aparentemente - tentam desvencilhar-se desse nó górdio para discutir uma sociedade mais justa, descentralizada e com as estruturas do poder político orientadas horizontalmente o façam repetindo o mesmo processo de submissão autoritária por meio da tentativa de culpabilização generalizada.

Assim o máximo que se consegue é promover a desagregação, reproduzindo justamente as armas do inimigo. Um inimigo cujo combate exige coesão e firmeza de espírito.

No mínimo... bem, no mínimo fica tudo como está.

4 comentários:

lingualingua.blogspot.com disse...

Bom em muito momentos e prolixo em muito momentos. Seja mais navalha, direto, conciso.

lingualingua.blogspot.com disse...

muitos momentos

Jozafá Batista disse...

Camarada Aldo, não esquenta! O sociólogo está tentando entrar no jornalista, é uma negociação difícil... mas a gente chega lá! hahahahaha

Abraços, meu grande amigo!

Pitter Lucena disse...

Mandou bem Josafá. Corcordo com tudo. Grande abraço.