domingo, 8 de março de 2009

POR QUE O SOCIALISMO?

Albert Einstein escreveu o texto a seguir exclusivamente para o lançamento da revista Monthly Review, cujo primeiro número foi publicado em maio de 1949.


Será aconselhável para quem não é especialista em assuntos econômicos e sociais expressar opiniões sobre a questão do socialismo? Eu penso que sim, por uma série de razões.

Consideremos antes de tudo a questão sob o ponto de vista do conhecimento científico. Pode parecer que não há diferenças metodológicas essenciais entre a astronomia e a economia: os cientistas em ambos os campos tentam descobrir leis de aceitação geral para um grupo circunscrito de fenômenos de forma a tornar a interligação dos mesmos tão claramente compreensível quanto possível. Mas, na realidade, estas diferenças metodológicas existem. A descoberta de leis gerais no campo da economia torna-se difícil pela circunstância de que os fenômenos econômicos observados são freqüentemente afetados por muitos fatores muito difíceis de se avaliar separadamente. Além disso a experiência acumulada desde o início do chamado período civilizado da história humana tem sido - como se sabe - largamente influenciada e limitada por causas que não são, de forma alguma, exclusivamente econômicas por natureza. Por exemplo, a maior parte dos principais estados da história deve a sua existência à conquista. Os povos conquistadores estabeleceram-se, legal e economicamente, como a classe privilegiada do país conquistado. Monopolizaram as terras e nomearam um clero de entre as suas próprias fileiras. Os sacerdotes, que controlavam a educação, tornaram a divisão de classes da sociedade uma instituição permanente e criaram um sistema de valores segundo o qual as pessoas se guiam desde então, até grande medida de forma inconsciente, no seu comportamento social.

Mas a tradição histórica é, por assim dizer, coisa do passado; em momento algum ultrapassamos de fato o que Thorstein Veblen chamou de “fase predatória” do desenvolvimento humano. Os factos econômicos observáveis pertencem a essa fase e mesmo as leis que podemos deduzir a partir deles não são aplicáveis a outras fases. Uma vez que o verdadeiro objetivo do socialismo é precisamente ultrapassar e ir além da fase predatória do desenvolvimento humano, a ciência econômica no seu atual estado não consegue dar grandes esclarecimentos sobre a sociedade socialista do futuro.

Segundo, o socialismo é dirigido para um fim sócio-ético. A ciência, contudo, não pode criar fins e, muito menos, incuti-los nos seres humanos; quando muito a ciência pode fornecer os meios para atingir determinados fins. Mas os próprios fins são concebidos por personalidades com ideais éticos elevados e - se esses ideais não nascerem já fadados ao insucesso, mas forem vitais e vigorosos - são adotados e mantidos por muitos outros seres humanos que, semi-inconscientemente, determinam a evolução lenta da sociedade.

Por estas razões devemos precaver-nos para não sobrestimarmos a ciência e os métodos científicos quando se trata de problemas humanos; e não devemos assumir que os peritos são os únicos que têm o direito a se expressarem sobre questões que afetam a organização da sociedade.

Inúmeras vozes afirmam desde há algum tempo que a sociedade humana passa por uma crise, que sua estabilidade foi gravemente abalada. É característico desta situação que os indivíduos se sintam indiferentes ou mesmo hostis em relação ao grupo, pequeno ou grande, a que pertencem. Para ilustrar o meu pensamento, permitam-me que exponha aqui uma experiência pessoal. Falei recentemente com um homem inteligente e cordial sobre a ameaça de outra guerra, que, na minha opinião, colocaria em sério risco a existência da humanidade, e comentei que só uma organização supra-nacional ofereceria proteção contra esse perigo. Imediatamente o meu visitante, muito calma e friamente, disse-me: “Porque você se opõe tão profundamente ao desaparecimento da raça humana?”

Tenho a certeza de que há pouco tempo, como um século atrás, ninguém teria feito uma afirmação desse tipo de forma tão espontânea. É a afirmação de um homem que tentou em vão atingir um equilíbrio interior e que perdeu mais ou menos a esperança de ser bem sucedido. É a expressão de uma solidão e isolamento dolorosos de que sofre tanta gente hoje em dia. Qual é a causa? Haverá uma saída?

É fácil levantar essas questões, mas é difícil respondê-las com um certo grau de segurança. No entanto, devo tentar o melhor que posso, embora esteja consciente do fato de que os nossos sentimentos e esforços são muitas vezes contraditórios e obscuros e que não podem ser expressos em fórmulas fáceis e simples.

O homem é, simultaneamente, um ser individual e social. Enquanto ser individual, tenta proteger a sua própria existência e a daqueles que lhe são próximos, satisfazer os seus desejos pessoais e desenvolver as suas capacidades inatas. Enquanto ser social, procura ganhar o reconhecimento e afeição dos seus semelhantess, partilhar os seus prazeres, confortá-los nas suas tristezas e melhorar as suas condições de vida. Apenas a existência desses esforços diversos e freqüentemente conflituosos respondem pelo caráter especial de um ser humano, e a sua combinação específica determina até que ponto um indivíduo pode atingir um equilíbrio interior e pode contribuir para o bem-estar da sociedade. É perfeitamente possível que a força relativa desses dois impulsos seja, no essencial, fixada por herança. Mas a personalidade que finalmente emerge é largamente formada pelo ambiente em que um indivíduo acaba por descobrir a si mesmo durante o seu desenvolvimento, pela estrutura da sociedade em que cresceu, pela tradição dessa sociedade e pelo apreço a determinados tipos de comportamento. O conceito abstrato de “sociedade” significa para o ser humano individual o conjunto das suas relações diretas e indiretas com os seus contemporâneos e com todas as pessoas de gerações anteriores. O indíviduo é capaz de pensar, sentir, lutar e trabalhar sozinho, mas depende tanto da sociedade - na sua existência física, intelectual e emocional - que é impossível pensar nele, ou compreendê-lo, fora da estrutura da sociedade. É a “sociedade” que lhe fornece comida, roupa, casa, instrumentos de trabalho, língua, formas de pensamento e a maior parte do conteúdo do pensamento; a sua vida foi tornada possível através do trabalho e da concretização dos muitos milhões de mortos e vivos escondidos atrás da pequena palavra “sociedade”.

É evidente, portanto, que a dependência do indivíduo em relação à sociedade é um fato da natureza que não pode ser abolido – tal como no caso das formigas e das abelhas. No entanto, enquanto todo o processo de vida das formigas e abelhas é reduzido a instintos hereditários rígidos, o padrão social e as inter-relações dos seres humanos são muito variáveis e suscetíveis de mudança. A memória, a capacidade de fazer novas combinações, o dom da comunicação oral tornaram possíveis os desenvolvimentos entre os seres humanos que não são ditados por necessidades biológicas. Esses desenvolvimentos manifestam-se nas tradições, instituições e organizações; na literatura; nas obras científicas e de engenharia; nas obras de arte.

Isso explica, num determinado sentido, a forma como o homem pode influenciar a sua vida através da sua própria conduta, e como neste processo o pensamento e a vontade conscientes podem desempenhar um papel.

O homem adquire ao nascer, por meio da hereditariedade, uma constituição biológica que devemos considerar fixa ou inalterável, incluindo os desejos naturais característicos da espécie humana. Além disso, durante a sua vida adquire uma constituição cultural que assimila da sociedade por meio da comunicação e de várias outras formas de influência. É essa constituição cultural que, com a passagem do tempo, está sujeita à mudança e que determina, em larga medida, a relação entre o indivíduo e a sociedade. A antropologia moderna descobriu, por meio da investigação comparativa das chamadas culturas primitivas, que o comportamento social dos seres humanos pode divergir grandemente, dependendo dos padrões culturais dominantes e dos tipos de organização que predominam na sociedade. É nisso que aqueles que lutam para melhorar a sorte do homem fundamentam as suas esperanças: os seres humanos não estão condenados, devido à sua constituição biológica, a exterminarem-se uns aos outros ou a ficarem à mercê de um destino cruel e auto-infligido.

Se nos interrogarmos sobre como deveria mudar a estrutura da sociedade e a atitude cultural do homem para tornar a vida humana o mais satisfatória possível, devemos estar permanentemente conscientes do fato de que há determinadas condições que não podemos alterar. Como já mencionei, a natureza biológica do homem, para todos os objetivos, não está sujeita à mudança. Além disso os desenvolvimentos tecnológicos e demográficos dos últimos séculos criaram condições que vieram para ficar. Em populações com fixação relativamente densa e com bens indispensáveis à sua existência continuada, é absolutamente necessário haver uma extrema divisão do trabalho e um aparelho produtivo altamente centralizado. Já vai o tempo - relembrando parece algo idílico - em que os indivíduos ou grupos relativamente pequenos podiam ser completamente auto-suficientes. É um pequeno exagero dizer que a humanidade constitui, mesmo atualmente, uma comunidade planetária de produção e consumo.

Cheguei agora ao ponto em que vou indicar sucintamente o que para mim constitui a essência da crise do nosso tempo. Ela diz respeito à relação do indivíduo com a sociedade. O indivíduo tornou-se mais consciente do que nunca da sua dependência em relação à sociedade. Mas ele não sente essa dependência como um bem positivo, um laço orgânico, uma força protetora, mas como uma ameaça aos seus direitos naturais ou à sua existência econômica individual. Além disso a sua posição na sociedade é tal que os impulsos individuais da sua constituição humana estão constantemente sendo acentuados, enquanto os seus impulsos sociais, que são por natureza mais fracos, se deterioram progressivamente. Todos os seres humanos, seja qual for a sua posição na sociedade, sofrem esse processo de deterioração.

Inconscientemente prisioneiros do seu próprio egoísmo sentem-se inseguros, solitários e privados do gozo ingênuo, simples e natural da vida. O homem pode encontrar sentido na vida, curta e perigosa como ela é, apenas dedicando-se à sociedade.

A anarquia econômica da sociedade capitalista como existe atualmente é, na minha opinião, a verdadeira origem do mal. Vemos diante de nós uma enorme comunidade de produtores cujos membros lutam incessantemente para despojar outros dos frutos do seu trabalho coletivo - não pela força, mas, em geral, em conformidade com as normas jurídicas estabelecidas. A esse respeito é importante compreender que os meios de produção - ou seja, toda a capacidade produtiva necessária para produzir bens de consumo, assim como bens de equipamento adicionais - podem ser legalmente, e na sua maior parte são, propriedade privada de indivíduos.

Para simplificar, no debate que se segue, chamo “trabalhadores” a todos aqueles que não são donos dos meios de produção - embora isso não corresponda exatamente à utilização habitual do termo. O dono dos meios de produção está em posição de comprar a mão-de-obra. Ao utilizar os meios de produção, o trabalhador produz novos bens que se tornam propriedade do capitalista. A questão essencial desse processo é a relação entre o que o trabalhador produz e o que ele recebe, ambos medidos em termos de valor real. Na medida em que o contrato de trabalho é “livre”, o que o trabalhador recebe é determinado não pelo valor real dos bens que ele produz, mas pelas suas necessidades mínimas e pelas exigências dos capitalistas para a mão-de-obra em relação ao número de trabalhadores ainda desempregados. É importante compreender que, mesmo em teoria, o pagamento do trabalhador não é determinado pelo valor do seu produto.

O capital privado tende a concentrar-se em poucas mãos, em parte devido à concorrência entre os capitalistas e em parte porque o desenvolvimento tecnológico e a crescente divisão do trabalho encorajam a formação de novas unidades de produção maiores às custas de outras menores. O resultado desses desenvolvimentos é uma oligarquia de capital privado cujo enorme poder não pode ser eficazmente controlado mesmo por uma sociedade política democraticamente organizada. Isso é verdade, uma vez que os membros dos órgãos legislativos são escolhidos pelos partidos políticos, largamente financiados ou influenciados pelos capitalistas privados que, para todos os efeitos práticos, separam o eleitorado da legislatura. A consequência é que os representantes do povo não protegem suficientemente os interesses da imensa maioria excluída da população. Além disso, nas condições atuais os capitalistas privados controlam inevitavelmente, direta ou indiretamente, as principais fontes de informação (imprensa, rádio, educação). É assim extremamente difícil e mesmo, na maior parte dos casos, completamente impossível, para o cidadão individual, chegar a conclusões objetivas e utilizar inteligentemente os seus direitos políticos.

Assim, a situação predominante numa economia baseada na propriedade privada do capital caracteriza-se por dois princípios fundamentais: primeiro, os meios de produção (capital) são privados e os detentores utilizam-nos como querem; segundo, o contrato de trabalho é livre. Claro que não há tal coisa como uma sociedade capitalista pura neste sentido. É notável, em particular, que os trabalhadores, por meio de longas e duras lutas políticas, conseguiram garantir uma forma um pouco melhorada do “contrato de trabalho livre” para determinadas categorias de trabalhadores. Mas tomada no seu conjunto a economia atual não difere muito do capitalismo “puro”.

A produção é feita para o lucro e não para o uso. Não há a menor vontade política para que todos os que possam e queiram trabalhar encontrem emprego; o que existe quase sempre é um "exército de desempregados". O trabalhador está constantemente com medo de perder o seu emprego. Uma vez que os desempregados e os trabalhadores mal remunerados não formam um mercado rentável, a produção de bens de consumo é menor e a conseqüência é a miséria. É por isso que o progresso tecnológico causa freqüentemente mais desemprego e não o alívio do fardo da carga de trabalho para todos. A busca pelo lucro, aliada à concorrência entre capitalistas, é responsável por uma instabilidade na acumulação e utilização do capital que conduz a depressões cada vez mais graves. A concorrência sem limites conduz a um enorme desperdício do trabalho e produz o já mencionado enfraquecimento da consciência social dos indivíduos.

Considero esse enfraquecimento dos indivíduos o pior mal do capitalismo. Todo o nosso sistema educativo sofre dele. É incutida uma atitude exageradamente competitiva no aluno, que é formado para venerar o sucesso de aquisições como preparação para a sua futura carreira.

Estou convencido que só há uma forma de eliminar esses sérios males, exatamente através da constituição de uma economia socialista, acompanhada por um sistema educativo orientado para objetivos sociais. Nesta economia os meios de produção são detidos pela própria sociedade e utilizados de forma planejada. Uma economia planejada, cuja produção seja voltada para atender às necessidades da comunidade, distribuiria o trabalho a ser feito entre aqueles que pudessem trabalhar e garantiria o sustento a todos os homens, mulheres e crianças. A educação do indivíduo, além de promover as suas próprias capacidades inatas, tentaria desenvolver nele um sentido de responsabilidade pelo seu semelhante em vez da glorificação do poder e do sucesso existente na nossa atual sociedade.

No entanto, é necessário lembrar que uma economia planejada não é ainda o socialismo. Uma tal economia planejada pode ser acompanhada pela completa opressão do indivíduo. A concretização do socialismo exige a solução de problemas sociopolíticos extremamente difíceis; como é possível, perante a centralização de longo alcance do poder econômico e político, evitar a burocracia de se tornar toda-poderosa e intocável? Como podem ser protegidos os direitos do indivíduo e com isso assegurar um contrapeso democrático ao poder da burocracia?

A clareza sobre os objetivos e problemas do socialismo é da maior importância na nossa época de transição. Visto que, nas atuais circunstâncias, a discussão livre e sem entraves destes problemas surge sob um tabu poderoso, considero a fundação desta revista como um serviço público importante.




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