sábado, 30 de outubro de 2010

O FIM DA CAMPANHA ELEITORAL

Por Washington Araújo, no Observatório da Imprensa

Os últimos dias da campanha eleitoral 2010 registraram coisas bem inusitadas. A começar pelo Vaticano, com o papa em pessoa, Bento 16, afirmando que é dever dos bispos católicos orientar os fiéis sobre o voto em candidatos que se oponham ao aborto. Os intelectuais logo deram um jeito de mostrar desaprovação a esta indevida intromissão do Vaticano em assuntos internos do Brasil. Afinal estamos em eleição e esta etapa final tem sido marcado pela questão do aborto, com acusações de que a candidata "matava as criancinhas" e com o bispo de Guarulhos (SP) ordenando a impressão de estupendos 20 milhões de folhetos com material eleitoral contendo discurso típico da campanha oposicionista. Mas os candidatos Dilma Rousseff e José Serra preferiram não cutucar a onça religiosa com vara curta e responderam com o clássico "Amém!"

Já na blogosfera o coral parecia mais afinado. Só que na contramão do comando papal: Bento 16 deveria utilizar seu santo tempo na consolação das milhares de vítimas de padres pedófilos em tantos países do mundo e deixar as coisas da política brasileira para os próprios brasileiros.

Outros religiosos da mesma congregação apostólica romana aconselharam no moderno Twitter que o pontífice "dedicasse um tempo a título de silêncio obsequioso". Em questão de minutos tínhamos na web fotos de José Serra beijando estatuetas de santos. E o presidente Luiz Inácio Lula da Silva dizendo que o papa apenas mostrou coerência com a posição da igreja católica, que é a de condenar o aborto.

Em São Paulo tivemos caminhada em apoio a José Serra saindo do Largo de São Francisco. Cerca de 3 mil pessoas. Mas o que os portais na internet divulgaram com vivo interesse foi que o sapato de FHC perdeu o solado. As fotos o mostravam com a perna um pouco acima do chão e o sapato escancarando a famosa boca de jacaré. Há muitos anos não via uma imagem tão inusitada e divertida envolvendo um ex-presidente da República, um dos últimos eventos deste segundo turno da campanha e um sapato literalmente em petição de miséria. No mesmo horário, no Recife, o presidente da República arrastava cortejo com estimadas 100 mil pessoas e em menos de 48 horas chorava em público por estarem se esvaindo seus dias como presidente do Brasil.

Em miúdos

Durante toda a sexta-feira (29/10), o assunto mais comentado era o último debate a ser transmitido pela Rede Globo de Televisão em horário nobre. Formato diferente: 80 pessoas indecisas de todo o Brasil, selecionadas pelo instituto de pesquisas Ibope, fazendo perguntas sobre temas pré-agendados. Os candidatos também podiam se movimentar livremente no palco. Na função de observador da imprensa anotei o seguinte sobre os candidatos:

** Dilma Rousseff apresentou calma, conseguiu concatenar de forma lógica suas ideias, mencionou números, dados técnicos e guardou distância regulamentar de raciocínios apressados e postura agressiva. Estava como peixe em aquário familiar, tocando em diversos temas, arranhando um ou outro, mostrando maior proximidade de quem fazia a pergunta (o tal eleitor indeciso). E, finalmente, foi objetiva, direta nas respostas. Estava tão à vontade que até pilheriou, riu com o apresentador William Bonner por questão de erro da própria Globo na cronometragem de seu tempo em uma de suas últimas intervenções.

** José Serra estava livre, leve e solto. Fazia questão de mostrar forçada amizade e familiaridade com quem fazia a pergunta, carregando na pronúncia do nome. Aquele jeito de "desde sempre fomos amigos de infância". Usou muitas frases de efeito, expressou suas impressões pessoais, deu estocadas no varejo no governo atual. Pareceu estar sempre pronto a recitar slogans de campanha. Ameaçou ser agressivo, mas se conteve. Parecia temer um embate direto com a adversária.

Serra foi beneficiado amplamente com as tomadas do cameraman, principalmente em sua fala final, quando a câmera fechou em close em seu rosto. Enquanto isso, o enquadramento no momento em que Dilma fazia suas considerações finais pegava sempre ela de perfil e, quando de frente, de corpo inteiro.

Trocando em miúdos: Dilma falou com plano aberto de câmera e de lado para o vídeo. Serra ficou dois minutos em close falando direto ao coração do eleitor. Como me dizia um colega professor desde os tempos do caso Proconsult, em 1982: "Meu caro, para bom entendedor..."

Retrocesso indesejado

Essa opção de colocar "indecisos" diante de suas potenciais opções merece algumas observações. Primeiro, os indecisos parecem ter sempre o perfil daquele brasileiro desencantado com a vida, sofrido pra chuchu, desiludido com a sociedade como um todo e suas falas parecem ter início a partir do portão de sua casa. Como são perguntas lidas, ficam com aquele jeito de coisa escrita e revisada umas duas ou três vezes, adquirindo assim forma de cacoete literário. O nível das perguntas, a forma como estavam formuladas beneficiavam o estilo Dilma de comunicação – nada de muito rebuscado, se é que me entendem.

As respostas de Dilma guardavam correlação com o próprio nível das perguntas. Mas o recorrente estilo de reclamação da realidade brasileira – seja na segurança seja na saúde – beneficiava o discurso de José Serra, que ultimamente tem apresentado em seus programas eleitorais e em entrevistas o Brasil terra arrasada onde nada funciona, nada dá certo, tudo merece nota inferior a zero.

De qualquer forma, tem gente apostando o braço direito de que boa parte das perguntas foram feitas na própria redação do Jornal Nacional ou do Jornal da Globo, e não pelos "indecisos". Curioso que dentre o conjunto de 12 perguntas formuladas por cada "indeciso", parece que o que valeu mesmo foi o critério de seleção usado pela emissora do Jardim Botânico: nenhuma pergunta sobre privatização, Petrobras, disseminação da banda larga, nem cheiro de qualquer comparação entre os períodos 1995-2002 e 2003-2010.

(O leitor deve ter notado que sempre coloco entre aspas a palavra "indeciso". Faço isso porque como gato escaldado já vi gente ser apresentada como indecisa em debate do primeiro turno desta mesma eleição e, na verdade, o sujeito tinha não apenas vínculo profissional partidário como estava engajado até o pescoço na campanha de uma candidatura.)

Para fechar este meu raciocínio devo destacar que, bem antes do final do debate, a câmera captou um dos "indecisos" se levantando para aplaudir a fala do candidato tucano.

Ao cabo e ao fim, considero que o melhor debate destas eleições foi aquele mediado pelo jornalista Fernando Rodrigues e promovido pelo UOL-Folha de S.Paulo. E o melhor de tudo é que os falsos temas não vieram para ficar: assim como chegaram, se foram. Seria um retrocesso imperdoável para a sociedade brasileira voltarmos a repensar a relação do Estado brasileiro com a Igreja...

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

ONDE VOCÊ ESTAVA EM 1964?

Por Emir Sader, na Carta Maior


Há momentos na história de cada país que são definidores de quem é quem, da natureza de cada partido, de cada força social, de cada indivíduo. Há governos em relação aos quais se pode divergir pela esquerda ou pela direita, conforme o ponto de vista de cada um. Acontecia isso com governos como os do Getúlio, do JK, do Jango, criticado tanto pela direita – com enfoques liberais ou diretamente fascistas – e pela esquerda – por setores marxistas.

Mas há governos que, pela clareza de sua ação, não permitem essas nuances, que definem os rumos da história futura de um país. Foi assim com o nazismo na Alemanha, com o fascismo na Itália, com o franquismo na Espanha, com o salazarismo em Portugal, com a ocupação e o governo de Vichy na França, entre outros exemplos.

No caso do Brasil e de outros países latinoamericanos, esse momento foi o golpe militar e a instauração da ditadura militar em 1964. Diante da mobilização golpista dos anos prévios a 1964, da instauração da ditadura e da colocação em prática das suas políticas, não havia ambigüidade possível, nem a favor, nem contra. Tanto assim que praticamente todas as entidades empresariais, todos os partidos da direita, praticamente todos os órgãos da mídia – com exceção da Última Hora – pregavam o golpe, participando e promovendo o clima de desestabilização que levou à intervenção brutal das FAA, que rompeu com a democracia – em nome da defesa da democracia, como sempre -, apoiaram a instauração do regime de terror no Brasil.

Como se pode rever pelas reproduções das primeiras páginas dos jornais que circulam pela internet, todos – FSP, Estadão, O Globo, entre os que existiam naquela época e sobrevivem – se somaram à onda ditatorial, fizeram campanha com a Tradição, Família e Propriedade, com o Ibad, com a Embaixada dos EUA, com os setores mais direitistas do país. Apoiaram o golpe e as medidas repressivas brutais e aquelas que caracterizariam, no plano econômico e social à ditadura: intervenção em todos os sindicatos, arrocho salarial, prisão e condenação das lidreanças populares.

Instauraram a lua-de-mel que o grande empresariado nacional e estrangeiro queria: expansão da acumulação de capital centrada no consumo de luxo e na exportação, com arrocho salarial, propiciando os maiores lucros que tiveram os capitalistas no Brasil. A economia e a sociedade brasileira ganharam um rumo nitidamente conservador, elitistas, de exclusão social, de criminalização dos conflitos e das reivindicações democráticas, no marco da Doutrina de Segurança Nacional.

As famílias Frias, Mesquita, Marinho, entre outras, participaram ativamente, no momento mais determinante da história brasileira, do lado da ditadura e não na defesa da democracia. Acobertaram a repressão, seja publicando as versões mentirosas da ditadura sobre a prisão, a tortura, o assassinato dos opositores, como também – no caso da FSP -, emprestando carros da empresa para acobertar ações criminais os órgãos repressivos da ditadura. (O livro de Beatriz Kushnir, “Os cães de guarda”, da Editora Boitempo, relata com detalhes esse episódio e outros do papel da mídia em conivência e apoio à ditadura militar.)

No momento mais importante da história brasileira, a mídia monopolista esteve do lado da ditadura, contra a democracia. Querem agora usar processos feitos pela ditadura militar como se provassem algo contra os que lutaram contra ela e foram presos e torturados. É como se se usassem dados do nazismo sobre judeus, comunistas e ciganos vitimas dos campos de concentração. É como se se usassem dados do fascismo italiano a respeito dos membros da resistência italiana. É como se se usassem dados do fraquismo sobre o comportamento dos republicanos, como Garcia Lorca, presos e seviciados pelo regime. É como se se usasse os processos do governo de Vichy como testemunha contra os resistentes franceses.

Aqueles que participaram do golpe e da ditadura foram agraciados com a anistia feita pela ditadura, para limpar suas responsabilidades. Assim não houve processo contra o empréstimo de viaturas pela FSP à Operação Bandeirantes. O silêncio da família Frias diante da acusações públicas, apoiadas em provas irrefutáveis, é uma confissão de culpa.

Estamos próximos de termos uma presidente mulher, que participou da resistência à ditadura e que foi torturada pelos agentes do regime de terror instaurado no país, com o apoio da mídia monopolista. Parece-lhes insuportável moralmente e de fato o é. A figura de Dilma é para eles uma acusação permanente, pela dignidade que ela representa, pela sua trajetória, pelos valores que ela representa.

Onde estava cada um em 1964? Essa a questão chave para definir quem é quem na democracia brasileira.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

OS "CÃES DE GUARDA"


Do blog Viomundo

Beatriz Kushnir escreveu um livro “incômodo” para a mídia brasileira. É “Cães de Guarda – Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988″, que conta histórias interessantes sobre os bastidores de jornais e emissoras de televisão durante o regime militar.

Fala do funcionário que Victor Civita despachou para “treinar” censores em Brasília. Fala dos censores que foram trabalhar dentro da TV Globo.

Fala dos policiais que se tornaram “jornalistas” e dos jornalistas que fizeram papel de policiais.

Fala dos bastidores da “Folha da Tarde“, o jornal do grupo Folha que prestou serviços à repressão.

Está explicado, portanto, o motivo pelo qual esse livro quase não foi resenhado. Beatriz hoje é diretora do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, que tem um dos maiores acervos da imprensa alternativa que floresceu durante o regime militar.

Mais sobre o livro aqui.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

CARTA ABERTA A FHC

O plano Real não derrubou a inflação e sim uma deflação mundial que fez cair as inflações no mundo inteiro. A inflação brasileira continuou sendo uma das maiores do mundo durante o seu governo. O real foi uma moeda drasticamente debilitada. Isto é evidente: quando nossa inflação esteve acima da inflação mundial por vários anos, nossa moeda tinha que ser altamente desvalorizada. De maneira suicida ela foi mantida artificialmente com um alto valor que levou à crise brutal de 1999. Outro mito é que seu governo foi um exemplo de rigor fiscal. Um governo que elevou a dívida pública do Brasil de 60 bilhões de reais em 1994 para mais de 850 bilhões, oito anos depois, é um exemplo de rigor fiscal? O artigo é de Theotonio dos Santos.

Texto completo na Agência Carta Maior.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

VIOLÊNCIA VIRTUAL

Por Cláudio Lembo*

Na verdade, segmentos remanescentes dos velhos quadros conservadores – reacionários que levaram Vargas ao suicídio – utilizam-se da tática do terror verbal para anunciar anormalidades que não existem.

É louvável e salutar o comportamento dos eleitores, em todas as oportunidades. Portam-se com dignidade e recato cívico exemplares. Não usam insígnias ou quaisquer indicativos de opção partidária.

Reservam-se para registrar suas opções pessoas na urna eletrônica. Quem viveu outras épocas e outras situações, conheceu violência contra a militância política.

Nem sempre de natureza física, mas sempre presente a coação moral representada pelos órgãos de repressão de ditaduras. O temor das palavras proferidas e suas inevitáveis conseqüências: as perseguições de todas as espécies.

Agora, os candidatos expõem – se assim quiserem – o próprios pensamento ou de suas agremiações partidárias. Ninguém o repreende. Só o eleitorado poderá definir se recebeu bem a mensagem ou a rejeitou.

A onda de histeria, presente em diminutos setores, aponta para uma regressão ao passado, particularmente para os anos cinqüenta e sessenta, quando um ódio de minorias urbanas explodia contra políticos progressistas.

É ingênuo este posicionamento. A sociedade avançou e um eleitorado das dimensões do brasileiro se movimenta com rapidez e busca os candidatos correspondentes às suas necessidades e conquistas.

Sentir medo do novo é próprio do conservadorismo. Nada se mantém estático. Tudo evolui e a sociedade não é diferente. Avança e agrega sempre novos contingentes capazes de pensar e agir livremente.

Nesta campanha, em vários momentos, retornou-se ao passado. Os chamados setores “bem pensantes” foram em busca dos argumentos mais heterodoxos.

Nada abalou a tranqüilidade do eleitorado. A paz esteve presente em todos os movimentos eleitorais. Tudo correu com exemplar regularidade por toda a parte.

Onde, pois, o fundamento para infundados temores? A concepção de artifícios recorda outros tempos, quando cartas falsas derrubavam governos.

Na atualidade, as instituições funcionam com normalidade absoluta. Os encarregados de preservar a soberania agem com respeitabilidade exemplar.

Só alguns, portanto, portadores de velhos hábitos golpistas, agora em desuso pleno, mostram-se amedrontados. Encontrarem violência onde apenas existem episódios próprios de campanhas extensas no tempo.

Os candidatos estão esgotados e o eleitorado já massivamente decidido. Só resta aguardar o próximo domingo. Os agentes verbais de violências inexistentes devem – sem dureza – digitar o número de seu candidato.

O erro de escolha, sim, indicará uma violência contra os próximos quatro anos. O resto é ficção.

* Cláudio Lembo é advogado e professor universitário. Foi vice-governador do Estado de São Paulo de 2003 a março de 2006, quando assumiu como governador

sábado, 23 de outubro de 2010

PRESEPADA DA SEMANA



Por Marcelo Zelic

A Farsa montada pela equipe da campanha do candidato José Serra sobre a agressão que sofreu no RJ, onde a reportagem do SBT mostra uma bolinha de papel atingindoa cabeça do candidato tucano, foi objeto de catarse coletivo no twitter, dada a transparência da reportagem.

A Globo, através do Jornal Nacional, visando desmarcarar o presidente Lula - que durante a tarde havia se pronunciado sugerindo que o Serra pedisse desculpas à nação - convocou um perito para "provar" que o que ela havia anunciado no dia anterior era verdadeiro, ou seja, que o tucano havia sido atingido por uma "bobina de fita crepe", objeto pesado, mostrando inclusive que José Serra havia levado a mão à cabeça no momento seguinte do impacto.

Através deste vídeo e somente com as informações editadas pela Globo, SBT e Folha de SP através do UOL, é possível ver de forma clara a manipulação realizada com intuito comprobatório. É um serviço à nação que o jornalista publique a íntegra sem edição ou corte de seu registro, para que os brasileiros e brasileiras saibam a verdade.

Não é assim que um político conquistará a presidência da república.

Chega de mentira.

Mais do mesmo aqui.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

20 MINUTOS

Estava eu preparando uma postagem sobre o ato criminoso de militantes nazipetistas contra a integridade física do candidato do PSDB à Presidência, José Serra, quando vi esse texto no sempre excelente Observatório da Imprensa. Transcrevo-o, e em seguida faço rápido comentário sobre um detalhe omitido pelo autor.

Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa


Foi mais ou menos como num jogo de futebol: o zagueiro encosta no atacante, o atacante se atira dentro da área, rolando, se contorcendo, na esperança de que o árbitro apite um pênalti. Mas as câmaras são soberanas. Elas mostram que o zagueiro mal tocou no centroavante, que o atacante se atirou, que não está machucado, que está simulando. Ainda assim, alguns narradores gritam: "Pênalti!". E no dia seguinte, os analistas vão bater boca o dia inteiro: foi, não foi, o juiz acertou, o juiz roubou.

Na cena reproduzida pelo Jornal da Record, o candidato José Serra vem caminhando, sorridente, pela rua do comércio de Campo Grande, na Zona Oeste do Rio. Vem cercado de correligionários e seguranças. Mais adiante, seu caminho está bloqueado por uma passeata de petistas, que podem ser identificados por suas bandeiras vermelhas.

A comitiva do candidato oposicionista segue na direção dos adversários, arma-se um rápido entrevero, no qual um petista é agredido por três acompanhantes do candidato Serra, que está abrigado à porta de uma loja.

Apartam-se as brigas, Serra retoma a caminhada.

Então, alguma coisa o atinge na cabeça.

Pela câmara da TV Record, observa-se que o candidato apenas passa a mão na cabeça, constatando que não está ferido. É levado, então, por seus acompanhantes para um hospital.

Corta para o médico que o atendeu. A frase é clara: ele não tem nem um arranhão. A reportagem esclarece: o candidato foi atingido por um rolinho de plástico, um desses adesivos de campanha amarrotado.

Agora, a mesma cena no Jornal Nacional, da TV Globo: tudo quase igual, exceto no momento em que José Serra é atingido. Substitui-se, então, a imagem em movimento, que mostra apenas um susto da vítima, por uma fotografia, tirada de cima para baixo, de efeito muito mais dramático.

Quando chega o trecho da entrevista do médico, sua voz desaparece e em lugar da versão oficial do hospital entra o locutor, que apaga a informação de que o canditado não sofreu sequer um arranhão e a substitui por uma versão mais grave. A encenação se completa com o candidato sendo entrevistado, sob uma tensa luz azulada, com olhar de vítima.

Simulando uma contusão

O episódio, condenável sob todos os aspectos, deve, no entanto, ser visto como resultado da irracionalidade e radicalização da campanha eleitoral.

Mas as versões apresentadas pela imprensa merecem uma análise à parte.

Uma curiosidade: quem teria descido do Olimpo global para comandar a edição de tão importante reportagem? Que critérios do manual de ética e jornalismo da Rede Globo foram brandidos para justificar a transformação de um episódio banal, mais do que esperado no ambiente de conflagração que os próprios candidatos andaram estimulando, em uma crise republicana?

As evidentes diferenças nas edições do Jornal Nacional, muito mais dramático, e do Jornal da Record, que tratou o episódio com mais naturalidade, sem deixar de condenar os excessos de militantes, têm a ver com jornalismo ou com engajamento eleitoral?

No boletim online do Globo, distribuido às 14h18 da quarta-feira, "Serra é agredido durante enfrentamento de militantes em ato de campanha no Rio".

Na edição de papel, primeira página do Globo, "Serra é agredido por petistas no Rio". No complemento, a informação alarmante: por orientação médica, o candidato cancelou o resto da agenda e submeteu-se a uma tomografia num hospital da Zona Sul.

Título na primeira página do Estadão: "No Rio, petistas agridem Serra em evento".

Na Folha, em foto menos dramática, "Serra toca local em que foi atingido por um rolo de adesivos…"

Quanto pesa um adesivo de campanha enrolado? Cinco, dez gramas?

E a tomografia? É resultado da conhecida hipocondria do ex-governador ou parte da estratégia para transformar um episódio grotesco e banal em atentado político? Como uma bolinha de papel, dessas que os alunos atiram uns nos outros nas salas de aula, poderia virar motivo de comoção nacional?

Em seu artigo na edição desta quinta-feira [21/10] da Folha de S.Paulo, a colunista Eliane Cantanhêde transforma o projétil de papel em "bandeirada" na cabeça e afirma que José Serra, literalmente, apanhou na rua.

Quanto vale um jornalismo dessa qualidade?

A chamada grande imprensa perdeu completamente as estribeiras.


Agora, meu comentário: o Jornal do SBT também noticiou a agressão. Foi o único a mostrar que entre o impacto da bolinha e a retirada do candidato para a tomografia passaram-se nada menos que 20 minutos... e mais: que, nesse intervalo, o candidato recebeu um telefonema no celular.

Quem tiver olhos, que veja. Clique aqui.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

ENREDO PARA GARCIA MÁRQUEZ


Dom Bergonzini, bispo da extrema direita num país latinoamericano, encomenda 20 milhões de panfletos que simulam a chancela da Igreja católica para atacar e caluniar a candidata da esquerda nas eleições presidenciais. Um lote do material é descoberto na gráfica da irmã do coordenador da campanha adversária, encabeçada por um falso carola -, um papa hostia de ocasião, apoiado pelos endinheirados e conservadores, cuja hipocrisia explode na figura da esposa, uma bailarina que fez aborto e acusa a adversária do marido de ser "a favor de matar as criancinhas".

A imprensa sem escrúpulos resiste em perguntar: "De onde veio o dinheiro, Dom Bergonzini?" Tampouco cogita indagar se o bispo e os donos da gráfica tem contato com outro personagem obscuro, um certo Paulo Preto - que o candidato da hipocrisia conservadora chama de "Paulo afro-descendente". Apontado como o caixa 2 da campanha da direita, Paulo desviou R$ 4 milhões, mas guarda segredos e fez ameaças, obrigando o líder a ir aos jornais e declará-lo um cidadão acima de qualquer suspeita.

LEIA MAIS

- PF apanha bispos e tucanos em flagrante

- IstoÉ: Serra deve explicações à sociedade brasileira

- Campanha em evento religioso irrita padre no Ceará

- Professores universitários: candidatura Serra é retrocesso

- Aborto da mulher de Serra é notícia fora do Brasil

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

REPULSA AO SEXO

Por Maria Rita Kehl (*), na Carta Capital.

Entre os três candidatos à presidência mais bem colocados nas pesquisas, não sabemos a verdadeira posição de Dilma e de Serra. Declaram-se contrários para não mexer num vespeiro que pode lhes custar votos. Marina, evangélica, talvez diga a verdade. Sua posição é tão conservadora nesse aspecto quanto em relação às pesquisas com transgênicos ou células–tronco.

Mas o debate sobre a descriminalização do aborto não pode ser pautado pela corrida eleitoral. Algumas considerações desinteressadas são necessárias, ainda que dolorosas. A começar pelo óbvio: não se trata de ser a favor do aborto. Ninguém é. O aborto é sempre a última saída para uma gravidez indesejada. Não é política de controle de natalidade. Não é curtição de adolescentes irresponsáveis, embora algumas vezes possa resultar disso. É uma escolha dramática para a mulher que engravida e se vê sem condições, psíquicas ou materiais, de assumir a maternidade. Se nenhuma mulher passa impune por uma decisão dessas, a culpa e a dor que ela sente com certeza são agravadas pela criminalização do procedimento. O tom acusador dos que se opõem à legalização impede que a sociedade brasileira crie alternativas éticas para que os casais possam ponderar melhor antes, e conviver depois, da decisão de interromper uma gestação indesejada ou impossível de ser levada a termo.

Além da perda à qual mulher nenhuma é indiferente, além do luto inevitável, as jovens grávidas que pensam em abortar são levadas a arcar com a pesada acusação de assassinato. O drama da gravidez indesejada é agravado pela ilegalidade, a maldade dos moralistas e a incompreensão geral. Ora, as razões que as levam a cogitar, ou praticar, um aborto, raramente são levianas. São situações de abandono por parte de um namorado, marido ou amante, que às vezes desaparecem sem nem saber que a moça engravidou. Situações de pobreza e falta de perspectivas para constituir uma família ou aumentar ainda mais a prole já numerosa. O debate envolve políticas de saúde pública para as classes pobres. Da classe média para cima, as moças pagam caro para abortar em clínicas particulares, sem que seu drama seja discutido pelo padre e o juiz nas páginas dos jornais.

O ponto, então, não é ser a favor do aborto. É ser contra sua criminalização. Por pressões da CCNBB, o Ministro Paulo Vannucci precisou excluir o direito ao aborto do recente Plano Nacional de Direitos Humanos. Mas mesmo entre católicos não há pleno consenso. O corajoso grupo das “Católicas pelo direito de decidir” reflete e discute a sério as questões éticas que o aborto envolve.

O argumento da Igreja é a defesa intransigente da vida humana. Pois bem: ninguém nega que o feto, desde a concepção, seja uma forma de vida. Mas a partir de quantos meses passa a ser considerado uma vida humana? Se não existe um critério científico decisivo, sugiro que examinemos as práticas correntes nas sociedades modernas. Afinal, o conceito de humano mudou muitas vezes ao longo da história. Data de 1537 a bula papal que declarava que os índios do Novo Continente eram humanos, não bestas; o debate, que versava sobre o direito a escravizar-se índios e negros, estendeu-se até o século XVII.

A modernidade ampliou enormemente os direitos da vida humana, ao declarar que todos devem ter as mesmas chances e os mesmos direitos de pertencer à comunidade desigual, mas universal, dos homens. No entanto, as práticas que confirmam o direito a ser reconhecido como humano nunca incluíram o feto. Sua humanidade não tem sido contemplada por nenhum dos rituais simbólicos que identificam a vida biológica à espécie. Vejamos: os fetos perdidos por abortos espontâneos não são batizados. A Igreja não exige isto. Também não são enterrados. Sua curta existência não é imortalizada numa sepultura – modo como quase todas as culturas humanas atestam a passagem de seus semelhantes pelo reino desse mundo. Os fetos não são incluídos em nenhum dos rituais, religiosos ou leigos, que registram a existência de mais uma vida humana entre os vivos.

A ambigüidade da Igreja que se diz defensora da vida se revela na condenação ao uso da camisinha mesmo diante do risco de contágio pelo HIV, que ainda mata milhões de pessoas no mundo. A África, último continente de maioria católica, paupérrimo (et pour cause…), tem 60% de sua população infectada pelo HIV. O que diz o Papa? Que não façam sexo. A favor da vida e contra o sexo – pena de morte para os pecadores contaminados.

Ou talvez esta não seja uma condenação ao sexo: só à recente liberdade sexual das mulheres. Enquanto a dupla moral favoreceu a libertinagem dos bons cavalheiros cristãos, tudo bem. Mas a liberdade sexual das mulheres, pior, das mães – este é o ponto! – é inadmissível. Em mais de um debate público escutei o argumento de conservadores linha-dura, de que a mulher que faz sexo sem planejar filhos tem que agüentar as conseqüências. Eis a face cruel da criminalização do aborto: trata-se de fazer, do filho, o castigo da mãe pecadora. Cai a máscara que escondia a repulsa ao sexo: não se está brigando em defesa da vida, ou da criança (que, em caso de fetos com malformações graves, não chegarão viver poucas semanas). A obrigação de levar a termo a gravidez indesejada não é mais que um modo de castigar a mulher que desnaturalizou o sexo, ao separar seu prazer sexual da missão de procriar.


(*) Texto publicado em 15 de outubro de 2010 no jornal O Estado de São Paulo, antes da autora ser demitida por causa de outro artigo, acerca da hipocrisia da sociedade brasileira sobre o voto dos pobres.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

MOISÉS

O deputado estadual Moisés Diniz (PCdoB) publicou um excelente texto que leva à reflexão sobre o aborto pelas lentes poderosas da metáfora literária.

É um retrato vivo, até mesmo emocionante, da subjetividade que ampara o nosso tempo e as nossas convicções quanto a questão é a interrupção violenta da vida de uma nova promessa de ser humano.

Quero dizer, em primeiro lugar, que a construção literária é tão poderosa que eu tive a exata impressão de mudar de opinião no instante em que imaginava a pequena Lia no útero materno, a pequena guerrilheira da vida na batalha contra o poderoso Cytotec.

Como comentei no Blog do Altino, Moisés tocou numa dimensão da questão, que é a dimensão ético-moral. Somos seres que criam valores, isto é, pensamento simbólico aplicado a julgamentos de valor (moral social). Estes julgamentos são necessários para diferenciar práticas nocivas e práticas válidas na reprodução social. Na dimensão ético-moral, as sociedades disciplinam os indivíduos por meio do cultivo de valores de forma a permitir a si mesma o máximo de funcionalidade e exequibilidade.

É neste ângulo, inteiramente sociológico, que eu tendo a acrescentar algumas reflexões ao belíssimo texto do Moisés.

Não discordo que a vida tenda a defender a si mesma, refuncionalizando todos os ataques para elaborar mecanismos de defesa, muitas vezes frágeis. Toda a história da vida, como bem afirma o Moisés, é exatamente a história dessa epopéia.

Também não discordo que há um imenso conflito biológico e psicológico no ato de abortar, para a mãe e para o embrião. Pode não parecer, mas a celeuma atual em torno da questão deve-se, entre outras coisas, a esse conflito. A ética social, por ser um aprendizado social constante, não está isenta das lições derivadas do confronto com a natureza e seus reveses.

Mas a questão fundamental que devo acrescentar é que idéias não criam realidades. As idéias, que a dimensão ético-moral integra, são valorações simbólicas da realidade, interpretações da mesma.

Dois pontos são então nevrálgicos no meu raciocínio ainda favorável à descriminalização do aborto no Brasil.

Em primeiro lugar, toda a agonia psíquica das mulheres no momento de interromper um novo ciclo de vida. Não acho difícil, se pedirem, uma mulher construir um texto belíssimo como o do Moisés, na forma de uma carta de despedida. Abortar é errado, antibiológico, as mulheres que o fazem sentem, sofrem, e por isso - graças aos valores que permeiam a vida social, e portanto, esta mulher - não há nem pode haver prazer em interromper uma gravidez.

Temos, então, um sofrimento biológico e também sociopsicológico para a mulher que aborta.

Outra reflexão fulcral é a dimensão médica da questão. Milhares de mulheres (12 por hora, segundo o Ministério da Saúde) morreram em 2009 devido a consequencias de abortos sem acompanhamento médico. Clique aqui para ler.

Ou seja, independentemente do que decidirem a respeito da descriminalização, o problema continuará matando mulheres porque é crime, na nossa legislação, abortar exceto nos casos previstos em lei.

Esta contradição é interessante porque mostra duas coisas: primeiro, é perfeitamente possível ser pessoalmente contra o aborto pelas questões ligadas à normatização ético-moral, e devido à questão latente da saúde pública (saúde feminina), diante do elevado número de mortes, ser totalmente a favor da descriminalização.

Suponho que este seja o posicionamento da candidata do PT à presidência, Dilma Rousseff.

É o meu também.

Infelizmente, não creio que a sociedade brasileira, que coloca a questão na forma de valores metafísicos e - em consequencia disso - rotula a favorabilidade à descriminalização como "abortismo", esteja preparada para discutir a questão neste nível de complexidade.

Isto porque a discussão assim posta requer o reconhecimento dos pressupostos que alimentam os argumentos. São eles: a idéia equivocada sobre o sofrimento da mulher livre para abortar, e o papel da sociedade no reforço das suas normatizações ético-morais contra a prática do aborto (mesmo após a descriminalização).

Resolvidos esses dois pontos de conflito, a questão se resolveria. Mas, como disse, sou cético em relação a isso.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

CHOCANDO O OVO...

Por Marcos Dantas, na Agencia Carta Maior

“Se Hitler invadisse o inferno, eu me aliaria ao demônio” – assim falou Churchill, o grande líder britânico da Segunda Guerra Mundial, quando lhe questionaram a aliança firmada com Stálin, o grande líder soviético na mesma Guerra, aliança esta decisiva para a derrota da barbárie nazista.

Bem que Hitler desejava muito aliar-se aos britânicos. Lamentou explicitamente até o fim da Guerra e da própria vida que os seus “primos” raciais não o tivessem “compreendido”. Não que Hitler e Stálin não tenham, em um dado momento, firmado um pacto de aliança. Mas ambos sabiam que era um pacto de ocasião, a ser rompido na primeira oportunidade, quando um lado, ou outro se julgassem preparados para fazê-lo. Foi rompido por Hitler mas, por efeito, entre tantos outros fatores, também desse pacto, a Guerra acabou vencida por Stálin e seus aliados capitalistas democráticos, Churchill e Roosevelt.

Reino Unido, Alemanha, Estados Unidos eram potências capitalistas. A União Soviética, potência comunista emergente. Capitalismo e comunismo eram inimigos viscerais. Mas o comunismo e o capitalismo democrático souberam se unir contra a besta nazista. O historiador Eric Hobsbawm, em seu A Era dos Extremos: o Breve Século XX, nos dá a explicação:

as linhas divisórias cruciais nesta guerra civil não foram traçadas entre o capitalismo como tal e a revolução social comunista, mas entre famílias ideológicas: de um lado, os descendentes do Iluminismo do século XVIII e das grandes revoluções, incluindo, claro, a russa; do outro, seus adversários [...] A Alemanha de Hitler era ao mesmo tempo mais implacável e comprometida com a destruição dos valores e instituições da ‘civilização ocidental’ da Era das Revoluções, e mais capaz de levar a efeito o seu bárbaro projeto [...] o antifascismo, por mais heterogêneo e transitório que fosse sua mobilização, conseguiu unir uma extraordinária gama de forças. E o que é mais, essa unidade não foi negativa, mas positiva, e em certos aspectos duradoura. Ideologicamente, baseava-se nos valores e aspirações partilhados do Iluminismo e da Era das Revoluções: progresso pela aplicação da razão e da ciência; educação e governo popular; nenhuma desigualdade baseada em nascimento ou origem; sociedades voltadas mais para o futuro que para o passado(Companhia das Letras, 2ª Ed., pgs. 146,147, 174).

Em suma, por mais antagônicos que fossem – e eram –, o liberalismo ocidental e o comunismo soviético tinham origem numa mesma matriz ideológica, política, ontológica, eram ramos divergentes de um mesmo frondoso tronco: o Esclarecimento racional, laico, republicano, universalista, igualitarista e progressista que veio transformando o mundo desde os tempos de Cromwell, Jefferson e Robespierre. O nazismo era a negação das grandes promessas do projeto Iluminista, a negação da igualdade entre os povos e entre as classes, a recusa do Estado de Direito, o escárnio dos direitos individuais e sociais dos homens e das mulheres.

Não se trata neste artigo, de discutir se aquelas promessas se cumpriam ou não. Liberais e comunistas se acusavam mutuamente de traí-las. Mas nisto, também, reafirmavam seus compromissos com um programa de liberação ou desalienação da humanidade. O nazismo representava o retorno, ainda que num estágio superior, ao obscurantismo e à barbárie. A interrupção das Luzes. Uma nova escuridão. Contra isso, apesar de suas profundas diferenças e mútuas desconfianças, uniram-se Churchill, Roosevelt e Stálin.

E venceram.

Nas últimas décadas, sob novas formas e por um amplo conjunto de motivos que não vem ao caso discutir aqui, o obscurantismo renasceu das trevas. Atende agora pelo nome “fundamentalismo religioso”. Ele pode ser muçulmano, pode ser católico, pode ser cristão sob outras denominações – em hipótese alguma significando dizer que já conquistou ou venha a conquistar a maior parte dos seguidores dessas religiões. De fato, recruta o grosso dos seus adeptos, como o nazismo recrutava, na grande massa popular pobre, posta nas fímbrias do progresso, por isto ressentida, sobretudo ignorante. No caso dos muçulmanos, tem sido capaz de levar centenas de jovens à auto-imolação espetacular, fornecendo bons pretextos para reforçar os aparatos de guerra, segurança, espionagem e repressão das potências capitalistas, sobretudo dos Estados Unidos. No caso dos cristãos, ainda não chegou a tanto, mas já se mostra capaz de agir ordenada e fortemente na recuperação de parte do terreno perdido para dois séculos de avanços seculares, no mundo e também no Brasil.

Estamos assistindo no Brasil, neste momento, a um debate inimaginável neste século XXI – em que pese este século estar sendo capaz de se revelar cada vez mais surpreendentemente inimaginável. O nosso Estado Democrático de Direito está correndo o risco de proporcionar-nos uma eleição decidida pelo obscurantismo e irracionalidade. Sabemos que a ainda então minoria nazista chegou ao poder, na Alemanha, também através dos mecanismos democráticos. Por isso, não está sendo possível entender que democratas, republicanos, lídimos herdeiros e formuladores do melhor das Luzes, queiram agora, no Brasil, chegar ao poder com a ajuda das Trevas.

Está acontecendo nas grandes periferias urbanas e rurais brasileiras, uma insidiosa, granular, sussurrante campanha fundamentalista contra a candidata do PT, Dilma Rousseff. Multiplicam-se relatos assustadores de conversas de “pastores” com seus crédulos, dizendo coisas como “a Dilma vai fechar a Igreja”. Isso dito a alguém, por exemplo, que, nos últimos oito anos, graças a programas do Governo Lula, comprou e mobiliou casa, tem emprego, melhorou de vida material. Mas não melhorou cultural e educacionalmente (e isso também é culpa do governo Lula!). Acredita piamente no “pastor”. E vai votar numa mentira porque o debate eleitoral reduziu-se à agenda obscurantista, quando teríamos muito o que debater sobre educação, infra-estrutura, política externa etc.

Em resposta, circulam na internet panfletos acusando Serra de já ter fechado templos evangélicos em São Paulo. Isto porque a cidade de São Paulo faz cumprir suas leis que protegem o cidadão da agressão sonora desses templos que teimam em desrespeitar o espaço público e o direito dos outros à paz e tranqüilidade no resguardo do lar. Se Serra, por ventura, tem algo a ver com isso, merece elogios, não críticas.

Que evangélicos, carismáticos e quejandos façam o que estão fazendo, é de lamentar mas não admira. O que admira e muito preocupa é o oportunismo eleitoral de uma parte da política laica e republicana que parece não se lembrar da lição de Churchill. O Brasil civilizado tem muito ainda a construir, inclusive para deter esse avanço de volta à barbárie, o que só logrará se incorporar à modernidade educacional e cultural, além da material, aquela massa popular que permanece vulnerável às prédicas medievais. Uma eleição é sempre o momento de a sociedade discutir os melhores caminhos para seguir avançando, avaliar e criticar o que já foi feito, debater suas alternativas. É natural, numa sociedade de classes, a diferença programática. Mas essa diferença se manifesta num mesmo campo histórico. Os fundamentalistas não podem ser aceitos nesse debate, porque, por definição e por suas práticas, agem pela ignorância, para a ignorância, com a ignorância.

Ora, Serra e Dilma, por formação, histórias de vida, lutas políticas, não têm posições assim tão distintas em relação a temas como “aborto”, “homossexualidade” e similares. Ninguém pode ser “a favor” do aborto, salvo talvez, algumas feministas radicais e egoístas; ninguém apóia a discriminação por opção sexual, salvo energúmenos. O que se pede – e, com certeza, ambos os candidatos não discordam, exceto talvez em detalhes – são políticas públicas e regras jurídicas que acolham a realidade já vivida em nossa sociedade. Estes são debates seculares e racionais, e nestes termos precisam e podem ser tratados por ambos os candidatos.

Faz-se necessário, neste momento, que cabeças sensatas de ambos os lados abram canal de comunicação visando recolocar o debate eleitoral nos trilhos da razão. Seria bom que ambos os candidatos manifestassem mútua solidariedade diante de ataques falsos e estúpidos, demarcando com clareza a agenda de discussão que interessa, de fato, ao Brasil moderno.

Eles têm muito o que divergir aí, na política educacional, na política de saúde, no papel do Estado, nas relações internacionais, nas prioridades de infra-estrutura, no tratamento ao meio-ambiente, nas reformas política e tributária etc. E devem dizer à sociedade que são as definições sobre esses pontos que conduzirão o Brasil para o futuro, cabendo à maioria político-eleitoral decidir o caminho que prefere, para os próximos quatro anos, sempre rumo ao esclarecimento e ao progresso.

Se o debate prosseguir agendado pelo atraso, ganhe quem ganhar, estará chocando o ovo da serpente.

Marcos Dantas é professor do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ.

sábado, 9 de outubro de 2010

A DEFESA DA VIDA



Há uma série de equívocos no argumento que se diz em "defesa da vida" quando o assunto é descriminalização do aborto no Brasil.

A interrupção da gravidez é um direito da mulher em 90% dos países europeus (incluindo a Rússia), nos Estados Unidos, no Canadá e nas regiões mais desenvolvidas da Ásia, como é possível conferir nas áreas em azul do mapa acima (clique nele para ampliar).

O equívoco não está relacionado, ainda com a ignorância sobre as 12 internações por hora no SUS, relacionadas a consequencias de abortos clandestinos (marca que ultrapassa a do câncer de mama), como averiguou reportagem publicada ontem no IG.

O maior erro desse argumento é, novamente, de ordem lógica: a defesa da vida não pode ser invocada contra o direito à interrupção da gravidez. Só a ejaculação masculina, necessária à própria gravidez, elimina de 200 a 600 milhões de espermatozóides, organismos unicelulares... e vivos!

São vivos, ainda: bananas, alfaces, carnes, feijão, arroz... em suma, toda e qualquer espécie dos reinos Vegetal ou Animal passível de entrar na onívora dieta do Homo sapiens. Seres que nascem, crescem, reproduzem-se e morrem até mais intensamente que nós viram nutrientes, todos os dias, em milhões de pratos humanos.

Mas suponhamos que não se trate de "defesa da vida", de forma genérica, e tão somente de "defesa da vida humana".

Nesse caso o equívoco é ainda maior!

O contexto da defesa da "vida humana" diferencia qualitativamente, por exemplo, um óvulo fecundado - o "zigoto" - de outro não-fecundado. Qual a origem dessa diferenciação? Sabe-se que o cristianismo há muito estabeleceu para os seus fiéis que o instante da união da alma ao corpo começa no ato da fecundação.

Mas esta doutrina não deveria ser religiosa, circunscrita a um grupo social?

Por que um óvulo não-fecundado seria "menos vivo" que um fecundado?

A propósito, até o terceiro dia de existência o zigoto é na verdade um conjunto de células indiferenciadas com enorme potencial para mutações chamado blastocisto, formado por células-tronco, alvo de polêmica recente no Supremo Tribunal Federal (STF) que, por sinal, acabou por decidir a favor da ciência.

A questão fundamental que orientou a decisão do STF sobre as células-tronco foi justamente esta: o que define um ser humano? Se a vida é preexistente ao zigoto, já existindo no óvulo e no espermatozóide, qual é a origem do argumento que define a humanidade no instante da fecundação?

A fecundação ao zigoto dá direito automático à integração no gênero humano?

Ou ser humano exigiria mais que isso?

Seria necessário que os "defensores da vida humana" apresentassem um único argumento que validasse a superioridade da vida humana em relação às demais. Em relação a um óvulo não-fecundado, por exemplo. Ou a um espermatozóide.

Mas os argumentos não existem, já que se trata de mais uma questão em que um artigo de fé esparramou-se como cultura no tecido social e tornou-se senso comum.

O leitor mais atento pode discordar, apresentando os indicadores mais empíricos do aparente destaque do Homo sapiens em comparação com os demais seres vivos: nossa música, nossa arte, nossa literatura, enfim, nossa cultura. Afinal nenhum animal aprendeu, como nós, a manejar a natureza e instrumentalizá-la em favor das nossas necessidades de sobrevivência.

Pois eis aí a chave da questão.

Ser humano é aquele que ser que se produz historicamente, ou seja, na medida em que se insere socialmente, assimilando ou subjetivando o gigantesco aparato histórico que a nossa civilização construiu? Ou um zigoto fecundado?

O meu argumento é o mesmo do STF: embriões, ou melhor, blastocistos, não são capazes de inserir-se socialmente, assim como blastocistos de mosca não podem voar ou os de onça não podem caçar. Na nossa espécie este princípio é ainda mais poderoso: somos essencialmente seres culturais, que não se produzem pela unicamente pela natureza. Nossa produção é cultural. Na medida em que nos socializamos, nos tornamos mais humanos por meio do compartilhamento de valores sociais. Isto é humanizar-se.

Ser humano não significa apenas ter cromossomos ou DNA humano, pertencer a espécie humana. Se assim o fosse teríamos que rever nossas posições quanto a possibilidade de congelamento de tecidos, ou de manter células em estado de hibernação; afinal, todos têm cromossomos e DNA humanos. Todos pertencem à espécie humana. Pertencer à nossa espécie não é a única condição necessária para que alguém seja realmente dotado de humanidade.

Ser humano vai muito além de características biológicas. Aliás, derivar princípios morais ou definir direitos a partir de características biológicas sempre conduziu a distorções inaceitáveis na história da organização política da humanidade. O nazismo, o racismo, o sexismo, a homofobia são os maiores exemplos.

Este conceito é um passo para a opressão política. Assim como é possível usar o momento da fecundação do óvulo ou o nascimento para determinar quem tem ou não "vida humana", outros podem empregar a cor da pele (ou dos cabelos), o tamanho das orelhas ou a habilidade de tocar um instrumento musical para conceder ou negar direitos individuais. É por isso que a concessão de direitos, na política, deve assentar-se sobre bases democráticas em vez de crenças.

Constituir a política de forma religiosa é o pressuposto do fascismo. É usar a "defesa da vida", como é o caso do aborto, para obter poder arbitrário e antidemocrático sobre o tecido social. É colaborar para implodir a democracia sob pretexto de preservar os "altos ideais", como ocorreu no Golpe de 64.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

MULHERES CONTRA O AIATOLÁ



Por Fátima Oliveira (*), no Viomundo


“Isso aqui”, o Brasil, não é um colônia religiosa, não é um Reino e nem um Império, é uma República! Dado o clima do segundo turno das eleições presidenciais brasileiras, parece que as urnas vão parir uma Rainha ou um Rei de Sabá, uma Imperatriz ou um Imperador, que tudo pode, manda em tudo e que suas vontades e ideias, automática e obrigatoriamente, viram lei! Não é bem assim…

Bastam dois neurônios íntegros para nos darmos conta que o macabro leilão de ovários (com os ovários de todas as brasileiras!), em que o aborto virou cortina de fumaça, objetiva encobrir o discurso necessário para o povo brasileiro do que significa, timtim por timtim, eleger Dilma ou Serra.

No tema do aborto a tendência mundial é, no mínimo, o aumento dos permissivos legais, que no Brasil são dois, desde 1940: gravidez resultante de estupro e risco de vida da gestante. Pontuando que legalização do aborto ou o acesso a um permissivo legal existente não significa jamais a obrigatoriedade de abortar, apenas que a cidadã que dele necessitar não precisa fazê-lo de modo clandestino, praticando desobediência civil e nem arriscando a sua saúde e a sua vida, cabe ao Estado laico e democrático colocar à disposição de suas cidadãs também os meios de acessar um procedimento médico seguro, como o abortamento.

Negá-lo, como tem feito o Brasil, que se gaba de possuir um dos sistemas de saúde mais badalados do mundo que garante acesso universal a TODOS os procedimentos médicos que não estão em fase de experimentação, é imoral, pois quebra o princípio do acesso universal do direito à saúde! Eis os termos éticos para o debate sobre o aborto numa campanha eleitoral. Nem mais e nem menos!

Então, o que estamos assistindo nas discussões do atual processo eleitoral é uma disputa para ver quem é a candidatura mais CAPAZ de desrespeitar os princípios do SUS, pasmem, em nome de Deus, num Estado laico! Ora, quem ocupa a presidência da República pode até ser carola de carteirinha, mas para consumo pessoal e não para impor seus valores para o conjunto da sociedade, pois a República não é sua propriedade privada!

Repito, não podemos esquecer que isso aqui, o Brasil, é uma República que se pauta por valores republicanos a quem todos nós devemos respeito, em decorrência, não custa nada dizer às candidaturas que limitem as demonstrações exacerbadas de carolice ao campo do privado, no recesso dos seus lares e de suas igrejas, pois não estão concorrendo ao governo de um Estado teocrático, como parece que acreditam. Como cidadã, sinto-me desrespeitada com tal postura.

As opções religiosas são direitos pétreos e questões do fórum íntimo das pessoas numa democracia. Jamais o norte legislativo de uma Nação laica, democrática e plural. Para professor uma fé e defendê-la é preciso liberdade de religião, só possível sob a égide do Estado laico, onde o eixo das eleições presidenciais é a escolha de quem a maioria do povo considera mais confiável para trilhar rumo a um país menos miserável, de bem-estar social, uma pátria-mátria para o seu povo.

Ou há pastores/as e padres que insistem em ignorar a realidade? “Chefe religioso” ignorante de que a sua religião necessita das liberdades democráticas como do ar que respiramos, não merece o lugar que ocupa, cabendo aos seus fiéis destituí-los do cargo, aí sim em nome de Deus, amém!

O leilão de ovários em curso resulta de vigarices e pastorices deslavadas, de má-fé e falta de escrúpulos que manipulam crenças religiosas de gente de boa-fé para enganá-las, como a uma manada de vaquinhas de presépio, vaquejadas por uma Madre Não Sei das Quantas, cristã caridosa e reacionária disfarçada de santa, exemplar perfeito de que pessoas desse naipe só a miséria gera. Num mundo sem miséria, madres lobas em pele de cordeiro são desnecessárias e dispensáveis. É pra lá que queremos ir e o leilão de ovários quer impedir!

Quem porta uma gota de lucidez tem o dever, moral e político, de não permitir que a escória fundamentalista de qualquer religião, que faz da religião um balcão de negociatas que vende Deus, pratica pedofilia e fica impune e ainda tem a cara de pau de defender a impunidade para pedófilos e os acoberta desde os tempos mais remotos, nos engabele e ande por aí com uma bandeja de ovários transformando a escolha de quem presidirá a República num plebiscito pra definir quem tem mais mão de ferro pra mandar mais no território do corpo feminino!

Cadê a moral dessa gente desregrada para querer ditar normas de comportamento segundo a sua fé religiosa para o conjunto da sociedade, como se o Brasil fosse a sua “comunidade religiosa”? Ora, qualquer denominação religiosa em terras brasileiras está também obrigada ao cumprimento das leis nacionais, ou não? Logo o que certas multinacionais da religião fizeram no processo eleitoral 2010 tem nome, chama-se ingerência estrangeira na soberania nacional. E vamos permitir sem dar um pio?

Diante dessa juquira (brotação da mata pós-desmatamento), onde só medrou urtiga e cansanção, cito Brizola, que estava coberto de razão quando disse: “O Brasil é um país sem sorte”, pois em pleno Século 21 conta com candidaturas presidenciais (não sobra uma, minha gente!) reféns dos setores mais arcaicos e feudais de algumas religiões mercantilistas de Deus.

É hora de dar um trato ecológico na juquira que empana os ideais e princípios republicanos, fora dos ditames da “moderna” agenda verde financeira neoliberal da “nova política”, que no Brasil é infectada de carcomidas figuras, que bem sabemos de onde vieram e pra onde vão, se o sonho é fazer do Brasil um jardim de cidadania, similar ao que Cecília Meireles tão lindamente poetou.

“Quem me compra um jardim com flores?/ borboletas de muitas cores,/ lavadeiras e passarinhos,/ ovos verdes e azuis nos ninhos?/ Quem me compra este caracol?/ Quem me compra um raio de sol?/ Um lagarto entre o muro e a hera,/ uma estátua da Primavera?/ Quem me compra este formigueiro?/ E este sapo, que é jardineiro?/ E a cigarra e a sua canção?/ E o grilinho dentro do chão?/ (Este é meu leilão!)” [Leilão de Jardim, Cecília Meireles].

Em 2010 em nosso país o que está em jogo é também a luta por uma democracia que se guie pela deferência à liberdade reprodutiva e que considere a maternidade voluntária um valor moral, político e ético, logo respeita e apoia as decisões reprodutivas das mulheres, independente da fé que professam. Nada a ver com a escolha de quem vai mandar mais no território dos corpos das mulheres! Então, xô, tirem as mãos dos nossos ovários!


E-mail: fatimaoliveira@ig.com.br

(*) Fátima Oliveira é médica e escritora. Feminista. Integra o Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) e o Conselho Consultivo da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe (RSMLAC). Escreve uma coluna semanal no jornal O Tempo (BH, MG), desde 3 de abril de 2002. Uma das 52 brasileiras indicadas ao Nobel da Paz 2005, pelo projeto 1000 Mulheres para o Nobel da Paz 2005.

Autora dos seguintes livros de divulgação e popularização da ciência: Engenharia genética: o sétimo dia da criação (Moderna, 1995 – 14a. impressão, atualizada em 2004); Bioética: uma face da cidadania (Moderna, 1997 – 8a. impressão atualizada, 2004); Oficinas Mulher Negra e Saúde (Mazza Edições, 1998); Transgênicos: o direito de saber e a liberdade de escolher (Mazza Edições, 2000); O estado da arte da Reprodução Humana Assistida em 2002 e Clonagem e manipulação genética humana: mitos, realidade, perspectivas e delírios (CNDM/MJ, 2002); Saúde da população Negra, Brasil 2001 (OMS-OPS, 2002).

Autora dos seguintes romances: A hora do Angelus (Mazza Edições, 2005); Reencontros na travessia: a tradição das carpideiras (Mazza Edições, 2008); e Então, deixa chover (no prelo).

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

OS 45 ESCÂNDALOS DE FHC

O documento "O Brasil não esquecerá - 45 escândalos que marcaram o governo FHC", de julho de 2002, é um trabalho da Liderança do PT na Câmara Federal de Deputados. O objetivo do levantamento de ações e omissões dos últimos sete anos e meio do governo FHC, segundo o então líder do PT, deputado João Paulo (SP), não é fazer denúncia, chantagem ou ataque.

"Estamos fazendo um balanço ético para que a avaliação da sociedade não se restrinja às questões econômicas", argumentou. Entres os 45 pontos estão os casos Sudam, Sivam, Proer, caixa-dois de campanhas, TRT paulista, calote no Fundef, mudanças na CLT, intervenção na Previ e erros do Banco Central. A intenção da Revista Consciência.Net em divulgar tal documento não é apagar ou minimizar os erros do governo que se seguiu, mas urge deixar este passado obscuro bem registrado.

Leia na Consciencia.net.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

O PROGRESSO CHEGOU!


Vai repercutir por muito tempo, de várias e inacreditáveis formas, a decisão judicial que criminalizou a greve dos trabalhadores do transporte "público" em Rio Branco, em junho desse ano. Motoristas e cobradores, alguns membros da diretoria do Sindicato dos Trabalhadores em Transporte de Passageiros e Cargas do Acre (Sinttpac), foram demitidos depois que a Justiça considerou a greve abusiva.

O primeiro sintoma já se fez sentir na paralisação dos bancários, iniciada ontem: escaldados com as demissões, os trabalhadores desse setor não duvidaram em furar a greve. Não querem ter o mesmo destino dos colegas, já que têm contas a pagar e famílias a sustentar.

O Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários (Seebac) não admite, mas a dificuldade do movimento salta aos olhos de quem passa pela Praça dos Povos da Floresta, no centro de Rio Branco, onde ocorre a concentração. Duas dúzias de pais e mães de família insistem em reivindicar seus direitos. Dos demais, não se sabe.

Enquanto a prefeitura - do Partido dos Trabalhadores - prefere evitar conflitos com os empresários (leia-se: principais doadores nas campanhas eleitorais), os sindicatos lidam sozinhos, ausentes dos partidos de esquerda, com uma mudança no relacionamento com o patronato acreano, subproduto do "desenvolvimento sustentável" do Acre.

Que mudança é esta?

Antes, vale lembrar que greve, no Acre, sempre foi monopólio de sindicatos de carreiras do poder público. Professores, enfermeiros, policiais etc. Mesmo no caso dos bancários, grande parte da categoria é formada por empregados do Banco do Brasil, da Amazônia e Caixa, ou seja, bancos públicos.

Em compensação, alguém já viu uma greve dos trabalhadores do comércio? O sindicato dessa categoria, certamente a mais numerosa da economia acreana, jamais fez uma mísera paralisação de 24 horas em toda a sua história.

O Sindicato dos Empregados no Comércio do Estado do Acre (Sincoacre), que funciona numa casa modesta do bairro Capoeira, é a antecipação dramática do que vai se tornar o movimento sindical acreano em poucos anos, graças ao desenvolvimentismo que se pretende sustentável às custas de fortalecimento da iniciativa privada via gordos subsídios estatais.

Esta é a mudança.

O fortalecimento do setor privado em várias frentes vai fazer com que os sindicatos se tornem meros coadjuvantes da burocracia jurídica necessária às demissões. E ótimos coletores de impostos: o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Acre (Sinjac), em seus anúncios de assembléia geral, já restringe a participação aos "jornalistas em dia" com o desconto sindical.

Não é necessário pensar muito para concluir que esse modelo de sustentável não tem nada: as transformações em curso nas relações sindicais acreanas deveriam ter como contrapartida uma Justiça que não considerasse o contrato de trabalho uma relação entre iguais (logo, uma Justiça não-liberal) e empresas que não utilizassem o conservadorismo jurídico para fazer demissões em massa.

Tanto uma coisa quanto outra está absurdamente distante no horizonte histórico do Acre, onde as normas comezinhas da democracia representativa só se tornaram regra jurídico-política a partir da redemocratização, isto é, após a Constituição de 88. A verdade é que o Acre foi forjado no autoritarismo oligárquico e todas as relações institucionais, incluindo as empregatícias, nasceram, cresceram e se desenvolveram por décadas unicamente sob este signo.

Utilizar subsídios estatais para desenvolver o Acre por meio da apropriação de mão-de-obra privada, nesses termos, vai certamente produzir mais empregos - como defende o Tião Bocalom e como vem fazendo os governos petistas -, mas vai produzir também sindicatos cada vez mais frágeis, burocráticos e subservientes: por força desses subsídios, toda vez que houver uma greve o chamado "poder público" - o Poder Judiciário - vai entender que se trata de uma ameaça "aos direitos sociais". E arguir contra os trabalhadores, desmobilizando os sindicatos.

É o sonho neoliberal.

Alegrai-vos, acreanos. O progresso, finalmente, chegou!

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

LIBERALISMO: HECATOMBE SOCIAL


"A questão social é um caso de polícia!" - esta frase, atribuída a Washington Luís, presidente da República de 1926 até a sua deposição em 1930, é geralmente apontada como o sintoma de como as questões relativas ao trabalho (a "questão social") eram descuidadas pelo Estado, durante o período da chamada República Velha (1889-1930).

E, de fato, a questão social era um caso de polícia. As greves e outras manifestações operárias eram violentamente reprimidas pela polícia, provocando prisões, feridos e mortes; os sindicatos eram invadidos e fechados; as redações dos jornais operários eram empasteladas; militantes estrangeiros eram expulsos do país pela força da lei (as leis Adolfo Gordo de 1907 e 1921). Mesmo os não estrangeiros sofriam deportações para regiões longínquas do país, e, durante o estado de sítio que se prolongou de 1922 a 1926, centenas de operários foram confinados na colônia do Centro Agrícola Clevelândia, às margens do rio Oiapoque, na fronteira com a Guiana Francesa. Lá, muitos pereceram.

A questão social enquanto caso de polícia tornou-se assim mais uma prova do caráter obscurantista desta República dita "Velha", já tão desprestigiada porquanto "oligárquica", dominada por latifundiários de mentalidade atrasada, que não abriam canais de participação política a ninguém, a despeito do liberalismo estampado na Constituição de 1891.

Aliás, a frase de Washington Luís foi também tomada como mais uma demonstração de que o liberalismo brasileiro destinava-se apenas ao consumo externo, "pra inglês ver", de que por trás do "país legal", de fachada liberal, ocultava-se um "país real", pontilhado de violências e arbitrariedades. Como dizer-se liberal, se "a questão social é um caso de polícia"? 0 liberalismo brasileiro, então, só podia ser mais unia aberração deste curioso país, já tão repleto de exotismos...

Mas, como alerta Luiz Werneck Vianna, liberalismo, a rigor, não é sinônimo de democracia. Nem tampouco significa 'progressista' - a não ser em certas épocas difíceis em que o uso de metáforas, nem sempre adequadas, é quase que obrigatório. E muito menos eqüivale a uma postura avessa à violência.

Pelo contrário: Locke (1632-1704), um dos clássicos do liberalismo, formula toda sua teoria política em torno da questão da violência. Para ele, trata-se de saber quem (e como) pode gerir e exercer a violência, ou, em outras palavras, quem tem o direito de castigar. A resposta é o Estado: "considero, portanto - diz Locke -, poder político o direito de fazer leis com pena de morte e, consequentemente, todas as penalidades menores para regular e preservar a propriedade (...)" (John Locke, Segundo Tratado Sobre o Governo).

Já se vê nesta afirmação que o fundamental para Locke é a defesa da propriedade. Esta, para o liberalismo, é a própria essência do indivíduo: "( ... ) cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo" (idem). Todo indivíduo tem a propriedade do seu corpo, de suas capacidades e, por isso mesmo, todos os homens, considerados individualmente, são iguais entre si, são todos proprietários. E como cada um tem plenos direitos sobre a sua propriedade, ele pode usá-la como bem entender, de acordo com a sua livre vontade: o indivíduo é, pois, dotado de vontade e de liberdade. O indivíduo é livre, por exemplo, para empregar o seu corpo no trabalho, cujos frutos tornam-se sua propriedade, privada, só dele.

Tal liberdade, porém, não é irrestrita e o seu limite é a propriedade mesma. Nenhum indivíduo tem a liberdade de atentar contra a sua vida, isto é, contra o seu próprio corpo, pois, do contrário, o homem teria a liberdade de deixar de ser homem, de ser proprietário, de ser livre - o que seria um contra-senso. Da mesma forma, nenhum indivíduo pode ter a liberdade de atentar contra a propriedade alheia, pois isto significaria limitar a liberdade do outro e, no limite, aniquilar-lhe a vida.

É por isso que se diz "a liberdade de um termina quando começa a liberdade de outro": esta frase, que parece exprimir uma verdade absoluta, é, na realidade, uma expressão do liberalismo e só pode ser entendida no quadro das formulações liberais. É por isso também que Locke é extremamente implacável para com os ladrões. O roubo, para ele, é um crime passível de pena de morte, pois roubar é, em última instância, destruir a essência do indivíduo (a propriedade), é assassinar. Assim. para resguardar os homens dessa pior forma de atentado que estes possam sofrer, nada mais justo que a pena capital e outras formas menores de retirar o criminoso do convívio de suas vítimas em potencial.

O problema é então: quem pode aplicar tal pena, de modo que o exercício do poder de castigar não degenere em um estado de guerra de todos contra todos? A resposta, como se disse acima, é o Estado. É a criação de leis positivas (rigorosamente determinadas e escritas), válidas para todos, e de algo que, estando acima dos homens e da sua comunidade, zele pelo cumprimento destas mesmas leis, monopolizando para si o poder de julgar, de exercer a violência e de aplicar penalidades. Em outras palavras, os indivíduos abdicam a liberdade de "fazer a justiça pelas suas próprias mãos" e entregam-na a um poder público - o Estado.

Mas como isto é feito com o único objetivo de defender, em cada indivíduo, a sua liberdade e propriedade, o Estado jamais pode intervir em assuntos privados, desde que estes não firam a liberdade e a propriedade de outros. Se, por exemplo, um industrial contrata um trabalhador, isto é um assunto privado entre as partes contratantes, e o contrato é a expressão do consenso entre ambas: aquele concordou em pagar um salário por um trabalho estipulado; este concordou em trabalhar sob determinadas condições. Mais do que isso, o contrato é a expressão da igualdade entre as partes (ambas são proprietárias - uma dos meios de produção, outra da força de trabalho) e da liberdade (cada uma é livre de assinar ou não o contrato). O contrato não supõe uma relação de força ou de desigualdade, não é um ato de dominação, não viola a propriedade e a liberdade de ninguém, e, por isso, é um assunto que só concerne aos contratantes enquanto indivíduos. É um assunto privado no qual o Estado jamais pode intervir.

Por isso, no mundo do liberalismo ortodoxo, é inconcebível a existência de uma legislação especial do trabalho, mesmo que seja apenas para regulamentar o contrato. Ao Estado compete tão-somente zelar pelo cumprimento deste contrato. evitando que este seja rompido sem o mútuo consentimento das partes contratantes. Mas, quando se verifica o rompimento das cláusulas contratadas? Por exemplo, numa greve: esta não só rompe unilateralmente o contrato assinado por livre e espontânea vontade, como também descaracteriza a igualdade nele suposta. Na greve, o patrão e o trabalhador não mais se enfrentam individualmente, em condições igualdade; o que se cria, ao contrário, é uma situação em que um indivíduo (o patrão) depara-se com um grupo (os grevistas), e, pior, numa relação de força e pressão. O Estado então deve intervir e exatamente enquanto policial.

Todas essas considerações, longe de pretenderem esgotar o tema do liberalismo, apenas indicam que não há contradição nenhuma entre o liberalismo, consagrado na Constituição de 1891, e a frase de Washington Luís, escandalosa pela sua rudeza. Também indicam que a ação da polícia, por mais repugnante que seja, está de acordo com a lei liberal. No liberalismo, a questão social é efetivamente um caso de policia!

Assim, ao menos no que se refere à questão do trabalho, o liberalismo brasileiro não pode ser considerado como uma mera "ficção jurídica", de fachada. Pelo contrário, como assinala Werneck Vianna, era um instrumento teórico e institucional perfeitamente adequado à dominação burguesa: garantia o domínio absoluto do patrão dentro da sua empresa (em cujos assuntos, privados, o Estado não podia jamais intervir) e assegurava a intervenção policial quando este domínio fosse perturbado pelas agitações operárias.

É esse tipo de doutrinologia espúria que está se reaproximando da política brasileira, com a confirmação do segundo turno nas eleições presidenciais. O neoliberalismo, defendido por unhas e dentes por partidos como o DEM e o PSDB, de José Serra, tende a transformar as poucas conquistas do proletariado brasileiro em pó, ampliando as desigualdades sociais a pretexto de "incentivar negócios privados". Quem tem negócio é patrão. Trabalhador, trabalha.

Defenda-se!

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

TRADIÇÃO AUTORITÁRIA

As sociedades reproduzem em suas vivências os valores cultivados como normas ao longo da sua história. Se toda a organização social bebe de alguma forma no seu próprio passado, tanto o distante quanto o recente, como é possível a organização de sociedades mais justas ou éticas no presente?

Tomemos como exemplo a "discussão" sobre o aborto. Do ponto de vista democrático é correto que uma mulher possa ter o direito de interromper a gravidez se assim o decidir. Trata-se de um raciocínio óbvio: se uma mulher é um ser racional e o aborto é uma prática agressiva contra o corpo e a mente, causando sofrimento físico e emocional, a decisão que opta pelo aborto, uma decisão consequentemente sofrida, tensionada, deve obter do Estado o aparato público necessário à sua consumação.

A falsa idéia de que a concessão desse direito fará com que as mulheres recorram intermitentemente ao SUS, já que a regulamentação do aborto impedirá a criminalização de médicos e pacientes, precisa de um único ingrediente da tradição autoritária que sociedades provincianas manejam muito bem: a desconfiança em relação ao sexo feminino.

Ou seja, é necessário ter um conceito consideravelmente baixo da mulher para considerá-la capaz de recorrer intermitentemente ao SUS para interromper gestações. Como se fosse algo fácil, simples, arbitrário, que se decide numa jogada de mão.

É parte da tradição autoritária brasileira - que as igrejas cristãs endossam e apoiam - olhar para a mulher e ignorar todo o sofrimento moral, o impasse psicológico, os riscos de hemorragias e outras consequencias orgânicas, além do dedo em riste da família, líderes religiosos e, quase sempre, da própria mulher.

O pressuposto dessa tradição é considerar a mulher incapaz de decidir por si mesma, sopesando seus sofrimentos e prejuízos, e concluir que a descriminalização do aborto causará uma corrida aos hospitais. O raciocínio subjacente a tudo isso é que, em relação a questões de gênero, é necessário apelar para o poder da tradição, da autoridade. Deixado a si mesmo, conclui tal pensamento, o gênero feminino tende a fazer cedo ou tarde algum tipo de barbaridade.

Trata-se do mesmo argumento utilizado ainda hoje para justificar uma suposta diferenciação entre brancos e negros, sendo aqueles civilizados e educados, e estes, idiotas e ineptos. No que realmente importa, no cerne, o argumento antifeminino e racista são a mesma coisa: a hipócrita tradição conservadora que ainda determina o conjunto de mitologias que, como se não bastasse, se crêem democráticas...

É igualmente mitológica, religiosa, a idéia de que o embrião humano ganha "alma" no momento da concepção (poucos instantes após o ato sexual, ou seja, na união entre óvulo e espermatozóide). De uma doutrina puramente etérea, metafísica, imaginativa, ela ganhou status empírico e não foi graças à discussão teórica, científica ou mesmo filosófica. Foi, isso sim, ao custo de genocídios e extermínios de povos inteiros, inclusive no Brasil. Sistemas de idéias ou de organizações sociais diferentes sempre representaram ameaças à hegemonia da tradição autoritária.

Vale lembrar que "alma" é uma criação religiosa, e, portanto, existente apenas no campo da fé (algo subjetivo, pessoal).

Diferente de todos os animais, a transmissão das características do nosso gênero aos novos indivíduos não se dá apenas biologicamente. Ela se dá também mediante sistemas de aprendizado ao longo da vida, "bebendo" na vida social preexistente em redor do novo indivíduo. É por isso que, ainda que sejam indivíduos do mesmo Homo sapiens, pessoas que nascem em sociedades diferentes falam idiomas diferentes, usam roupas diferentes, têm tradições religiosas diferentes etc.

Por esta razão o termo "humano" só é inteiramente aplicável - como o sabe a Psicanálise contemporânea - ao indivíduo na medida da sua inserção simbólica na gigantesca herança simbólica adquirida por nossa espécie ao longo das eras. Linguagem, cultura, mitos, raciocínio lógico etc, são o legado comum de todos os homens, porque é também o legado da Humanidade.

E se não somos seres humanos melhores nesse processo, isto deve-se ao fato óbvio de que o peso imenso das muitas tradições autoritárias é muito maior que o legado cultural que todos podemos, por direito de nascimento - por pertencer à espécie - acessar.

A profusão de mitos religiosos autoritários, destinados a colocar o sexo feminino em seu "devido lugar" (atrás do fogão) e a desconfiança em relação ao gênero feminino oriunda exatamente dessa tradição autoritária, sobrepõem-se à vida democrática sob um único pretexto: obter poder sobre os indivíduos.

A sociedade inteira organiza-se por meio de sistemas de controle, do qual o aborto é só um deles. O que é muito curioso, por sinal. Quando, em fins do Séc. XVII, a ascensão burguesa derrotou as monarquias absolutistas européias para se tornar mais tarde a formação societal dominante até os nossos dias, a promessa era justamente que a liberdade individual seria a prioridade dos sistemas que se pretendiam democráticos.

Não é.

Em nossos dias, como em todas as épocas, forças poderosas conjugam-se com a ignorância política para produzir arranjos bizarros de poder, em nome da democracia! Vozes discordantes, progressistas, são chamadas a se calar diante de práticas covardes de intimidação e criminalização.

Se quisermos ter uma sociedade justa precisamos primeiro deixar de nos guiar por valores normativos, autoritários, profundamente antidemocráticos. Criar uma ordem humana, consensual e democrática, requer construção societal fundada no que for melhor para as pessoas, não em concepções metafísicas calcadas na ignorância e no preconceito.

Somente assim será possível iniciar a reflexão sobre os limites da democracia representativa: conhecendo os arranjos de poder que lhes são subjacentes. Caso contrário, toda luta será inglória.