quarta-feira, 25 de maio de 2011

DICOTOMIZAÇÃO

A palavra feia que dá título à postagem de hoje significa, segundo o Dicionário Houaiss, dividir em duas partes. É o ato de classificar ou validar duas idéias opostas sobre um mesmo processo, geralmente complexo. Na política, a dicotomização é praticada com um acréscimo: escolhendo um meio termo entre idéias dicotômicas. Dessa prática largamente utilizada surgiu a expressão popular "agradar a gregos e troianos".

Trata-se do mecanismo ideologicamente mais poderoso da nossa época. Ao se escolher o meio termo de uma dicotomia, oculta-se que trata-se de uma dicotomia, ou seja, de idéias sobre um objeto e não do próprio objeto. Por isso, escolher um meio termo não garante que o objeto esteja de fato elucidado, e sim que entre duas interpretações opostas, ou seja, duas teorias opostas sobre o objeto, escolheu-se o "ponto de equilíbrio".

Obviamente, o efeito colateral dessa prática é que o objeto em si - ou seja, o problema, o fato, a realidade em si - permanece intocada. Escolher o ponto de equilíbrio entre interpretações opostas sobre a realidade não tem qualquer implicação sobre os problemas da realidade mesma. A realidade possui tarefas, implicações e complexidades que independem das interpretações sobre a mesma.

Parece um ovo de Colombo, mas não é. Uma prova: a alteração do Código Florestal Brasileiro.

Durante as discussões na Câmara dos Deputados, a mídia e os formadores de opinião em geral venderam a falsa idéia de que tratava-se de um embate entre verdes e ruralistas. Por isso, cabia aos homens de boa índole e caráter democrático dialogar com o lado contrário na busca por um meio termo que agradasse a gregos e troianos. Encontrado esse lugar mítico, estaria resolvido o problema e todos seriam felizes.

Pergunto: quais as implicações de um consenso no Congresso Nacional no esgotamento mundial dos recursos naturais renováveis? Em que esse consenso mudaria a questão mais ampla do rumo suicida que todas as nações vêm tomando a pretexto de imperativos econômicos? Como uma mudança consensual do Código Florestal Brasileiro impediria a atual rota fatídica rumo ao colapso da civilização humana?

Em que promover o equilíbrio entre ambientalistas e ruralistas mudaria na consciência do Homo sapiens sobre o seu lugar neste planeta?

Parecem questões teóricas, mas não são. Todas as espécies do planeta desenvolvem instintivamente uma interação com o meio ambiente de tal modo que qualquer destruição é sempre recomposta, com benefícios para todos. Nós perdemos esta capacidade. Nós, a única "espécie racional" da natureza. Nós, criadores de prédios e automóveis, não nos reconhecemos mais como espécie: nos reconhecemos como consumidores. Ou no máximo como brasileiros, norte-americanos, bolivianos, australianos etc.

A categoria geral que no designa, a civilização humana, se perdeu do nosso horizonte histórico.

Como isso foi acontecer?

Uma das razões é a dicotomização da política. Escolher entre duas teorias sobre o real pode não ter implicação alguma sobre o próprio real, no sentido da sua autonomia. Mas possui o enorme poder de legitimar da parte que escolhe. A aparência de democracia, de benevolência moral, de profundidade democrática, se encarrega de estabelecer, para aqueles que legislam sobre os nossos destinos, uma "aura" que não somente beira a santidade como também aprofunda o seu próprio poder de mando... e com isso cria um lapso entre os problemas do mundo real e os problemas dos consensos entre narrativas.

No caso do Código Florestal a realidade já se impôs antes mesmo da votação: as queimadas e derrubadas dispararam em praticamente todo o país antes mesmo da aprovação do novo texto. É um exemplo cada vez menos raro no qual a realidade berra em alto e bom som: "Vejam, estou aqui!", enquanto todos estão na busca obsessiva por consensos.

Novos exemplos surgem todos os dias na vida concreta das pessoas, naquilo que a imprensa chama "cotidiano dos bairros". A razão é aquele ovo de Colombo: a realidade tem os seus próprios processos. Grande parte do que se acredita ser uma forma de organização é na verdade, e há muito tempo, um mecanismo para o seu ocultamento. Os principais mecanismos de dominação e controle social, que impedem uma vista mais justa para todos, estão no mundo da política. É de lá que saem os cordões das marionetes.

A liberdade só poderá se realizar politicamente com a supressão da atual política. Nunca na história da nossa espécie foi tão urgente a implantação de um modo de vida onde o poder seja horizontalizado e as decisões tomadas por todos. Só assim poderemos recuperar o debate civilizacional perdido para mistificações sobre os "conflitos de interesses" e as "necessidades de governabilidade" em geral. A política, por sua natureza, nunca vai passar disso. Por necessitar de consensos, ela precisará obviamente manter as partes em dissensos.

Já escrevi no blog que um dos objetivos da busca por equilíbrio nos diálogos da política é manter as aparências do próprio jogo do poder. Há muito tempo o mundo da política descobriu que conceder espaços de protagonismo beneficia muito mais a quem favorece, não tanto a quem é favorecido.

Resultante desta, outra descoberta foi o efeito obtido quando se confunde radicalismo e sectarismo. Mas, a este respeito, o livro que ilustra a postagem de hoje tem muito mais a dizer do que eu.

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