segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A MORDAÇA GAY

Um dos debates mais promissores da futura gestão Dilma é a discussão sobre o Projeto de Lei 122/2006, que propõe a criminalização da homofobia. A questão já rendeu várias pautas para jornalistas, especialmente em programas de auditório na TV, e vem sendo tratada pelo Congresso Nacional, acredite se quiser, como uma queda-de-braço entre grupos de defesa dos direitos homoafetivos e líderes de igrejas, notadamente cristãs.

É sugestivo que nas discussões televisivas não apareçam antropólogos, sociólogos, cientistas políticos ou biólogos. A voz da ciência cede lugar às performances de pastores evangélicos, que - felizmente - usam nessas aparições os mesmos argumentos que orientam as bancadas evangélicas nas diversas instâncias do Poder Legislativo.

Esses argumentos são importantes porque ajudam a esclarecer a questão. Seu debate permite conhecer não somente a solução para os crimes cometidos contra homossexuais, como ainda ampliar o nosso conhecimento do quanto o discurso religioso consegue mobilizar a sociedade brasileira.

O primeiro grande argumento apresentado nessas ocasiões diz respeito à possibilidade da lei, se aprovada, criar uma espécie de "mordaça gay" nos demais segmentos e grupos sociais. O seguinte raciocínio é: "Como a Constituição garante a liberdade de expressão, estabelecer como crime a opinião pessoal negativa sobre a homossexualidade não seria inconstitucional?"

Obviamente os grupos contrários à aprovação do PL 122/2006, geralmente religiosos (evangélicos pentecostais em particular), apostam que sim e fazem um poderoso lobby para tentar barrar o projeto, que encontra-se parado desde agosto de 2008 na Comissão de Direitos Humanos e Gestão Participativa. A idéia subjacente a esse argumento é que, assim como não é crime a expressão de idéia negativa sobre a condição heterossexual, não deveria ser criminalizada a mesma conduta em relação ao homossexual.

Discordo desse argumento, por vários motivos. O principal deles é que a condição heterossexual não é marginalizada ou mesmo considerada abertamente ofensiva, como ocorre com a homossexualidade. Os "valores sociais" dados a ambos são diferentes. Enquanto a conduta heterossexual possui toda uma herança arquetípica, inclusive religiosa, que consiste no homem provedor e na mulher virtuosa (com circunscrições bem delimitadas para ambos no gestuário, roupas, cortes de cabelo, trejeitos, comportamentos autorizados etc), a homossexual é motivo de desabonamento e assédio morais, agressões, juízos negativos de valor e assemelhados.

Portanto, a questão ultrapassa a mera contraposição entre o direito de "juízo crítico" a uma conduta sexual, o que estaria, em tese, amparado pelos direitos à livre expressão e a igualdade entre os indivíduos previstos no Artigo 5 (cláusula pétrea) da Constituição de 88. Agir assim não seria apenas desconsiderar as diferenças profundas entre uma e outra condição na prática social, mas na prática negar precisamente a livre expressão e a igualdade para homossexuais. Ou seja: o que demanda a existência de uma lei contra a homofobia é exatamente a existência de lugares valorativos para as diferentes condições sexuais.

Como uma democracia deve consistir no direito à expressão e à igualdade de todos os cidadãos, indistintamente de quaisquer características adicionais, consequentemente a discriminação por sexo é não só inconstitucional, é antidemocrática.

Pode-se contra-argumentar que já existem leis complementares no ambito penal para crimes de agressão, roubo, furto e até mesmo assédio moral que se aplicam a todos os públicos, independentemente da sua orientação sexual. Surge então uma questão similar à anterior: "Uma lei que punisse a homofobia não seria um adendo desnecessário à legislação atual, criando na prática uma casta especial de protegidos com mais direitos que os demais?"

Esta questão é claramente mais simples. Os crimes cometidos contra homossexuais e heterossexuais são obviamente os mesmos. As motivações, porém, são diferentes. O que uma lei complementar deve buscar inibir não é os crimes cometidos, mas a sua motivação subjacente: a diferença de orientação sexual. Como a legislação nacional não tipifica como crime a conduta discriminatória (que pode ou não redundar em crime), é necessária uma legislação específica para inibir a percepção da homossexualidade como conduta "errada", ou seja, passível de discriminação. Como a discriminação já é um ato de violência (homofobia), esta cria a situação favorável para que pessoas de conduta discriminatória mais acentuada cometam crimes cujas penas já são previstas em outros códigos jurídicos, notadamente no Código Penal Brasileiro.

A necessidade de uma lei contra a homofobia, nesse contexto, justifica-se pela necessidade social de estabelecer o indivíduo de condição homossexual como um portador dos mesmos direitos elementares que os demais. Esse direito, negado na prática cotidiana, lhe assiste não somente por força da Constituição de 88, mas pelo princípio democrático segundo o qual todos os cidadãos, indistintamente de quaisquer características que possam ter ou desenvolver, devem ser iguais em direitos e deveres.

Para a Sociologia, porém, a questão fundamental desse debate está um pouco além.

Há pouco tempo as mesmas questões foram levantadas quando da criação e aprovação do Estatuto da Igualdade Racial pelo Congresso. Temia-se uma "ditadura dos negros" sobre os demais grupos étnicos, por um lado, e dizia-se ainda que os negros pretendiam ter mais direitos que os outros. Em resposta, os movimentos de defesa dos direitos dos negros trouxeram ao debate o enorme passivo social criado pelo resultado da abolição da escravatura, em 1888, sem qualquer cobertura social, e a incomensurável contribuição social, política e econômica, dentre outros segmentos, desse povo para a constituição do Brasil.

Seguiu-se então a análise do fato concreto, isto é, daquilo que o sociólogo Florestan Fernandes definiu como a "inserção dos negros nas sociedades de classe". Foi aí que se descobriu que o "lugar social" dado aos negros era o da marginalização catapultado não pelo preconceito étnico, mas de classe social. Constatado que o preconceito agia e age sobre esse grupo como forma de discriminá-lo, reduzindo-o ou desabonando-o, o Congresso aprovou o Estatuto da Igualdade Racial e o governo federal passou a elaborar políticas de cobertura social para negros, usando assim a ascensão social como estratégia de combate ao preconceito.

Somando esses dois exemplos (o dos homossexuais e o dos negros) a toda a epopéia histórica da luta feminista pelo direito ao divórcio, ao voto e ao aborto, acrescentando-se ainda os estatutos do Idoso e da Criança e Adolescente, não deveríamos observar mais atentamente a origem dessa segmentação crescente da proteção social no Brasil?

Trata-se, evidentemente, de tarefa sociológica árdua. Mas há algumas pistas.

A melhor delas, na minha opinião, está relacionada com a qualidade da nossa democracia. A lição mais óbvia que se pode tirar de tantos códigos simultâneos é que cada vez mais grupos ou segmentos sociais precisam de reconhecimento do seu direito à democracia, o que, se não é contraditório, é dialético: não vivemos em um Estado de Direito, regidos por uma Constituição?

Não estou contestando a existência dos códigos, mas a motivação subjacente: qual é a origem do fenômeno social (porque trata-se, evidentemente, de um fenômeno social) que torna necessária, até indispensável, a existência de leis para afirmar o que a Constituição já afirma, ou seja, que todos são cidadãos cobertos pelos mesmos direitos e deveres em um regime democrático?

Por que é necessário que se criminalize a conduta que alija um grupo de pessoas dos seus direitos mais básicos para que, por força de lei, a igualdade constitucional seja respeitada?

Esse fenômeno, longe de sinalizar democracia, deve deixar-nos alertas. Nossa sociedade cultiva algum dispositivo cujo princípio funcional é a "eleição" de um comportamento válido e a consequente discriminação das demais. Um tipo de sexualidade, um tipo de etnia, um tipo de idade etc. Essa produção sistemática de lugares simbólicos é evidentemente antidemocrática, e por isso mesmo típica de sociedades profundamente autoritárias, que precisam manter algum controle irrestrito sobre os cidadãos por meio de condutas fascistas ou teocêntricas e assim obter o máximo de legitimidade possível para o seu próprio discurso, discriminando, violentando e até mesmo punindo severamente os discursos e expressões diferentes.

Numa sociedade teocêntrica isso se constitui em um problema quase insolúvel. Numa sociedade laica, a tendência é que cada vez mais grupos tendam a procurar cobertura do Estado para poder exercer os direitos concedidos pela democracia representativa.

Há que se concordar, logo, que o lobby de líderes religiosos contra a concessão desses direitos é bastante elementar quando se quer elucidar a origem do fenômeno.

E não, não sou contra pastores, padres, rabinos ou líderes de qualquer outra confissão religiosa expressarem seus conceitos publicamente. O que me assusta é que esses conceitos saiam da circunscrição da autoridade desses líderes, ou seja, suas igrejas, templos e sinagogas.

Pode-se contra-argumentar, de novo, que pastores e religiosos em geral também são cidadãos e que nesta condição deveriam ter o direito de expressar-se publicamente sobre o tema. Eles têm, claro. O que não podem é argumentar religiosamente sobre uma questão civil, isto é, política. Trata-se então da qualidade dos argumentos: o pastor que argumenta que o PL 122/2006 vai instituir uma "mordaça gay" na sociedade demonstra ignorar que o seu próprio argumento pressupõe o direito de discriminar o comportamento homossexual.

A origem dessa motivação é obviamente religiosa: é sabido que as religiões de tronco árabe como Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, proíbem claramente a orientação homossexual.

Têm todo o direito de fazê-lo, até porque esse exercício é que nos revela cristalinamente a origem do autoritarismo que vem produzindo uma democracia cada vez mais antidemocrática e excludente no Brasil. Mas esse direito de expressão, fundado numa doutrina milenar, deve estar circunscrito aos respectivos templos, onde é aceito como doutrina, questão de fé.

Mas a democracia brasileira, ao contrário do que se possa achar, não é uma igreja.

2 comentários:

Paulo Avelino disse...

Parabéns.
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Objetivo e calmo, tirando muita fumaça desse debate que a tem gerado mais do que luz.
.
abs
Paulo
http://twitter.com/diplomacia1

irs1980 disse...

Texto claro, coeso e esclarecedor. Dificil tecer argumento contra.

Parabéns!