segunda-feira, 22 de novembro de 2010

PAPEL ACEITA TUDO

Uma graça a repercussão nos jornais da pesquisa Contas Regionais do IBGE nesse fim de semana.

O crescimento de 6,9% do Produto Interno Bruto (PIB) acreano em 2008 foi comemorado como um bem coletivo sem que ninguém, absolutamente ninguém perguntasse: "Cadê os resultados dessa abundância toda?"

Onde estão as indústrias? Os empregos? A redução das desigualdades? A qualidade de vida?

Para onde foi essa grana?

Não contesto o ritmo de crescimento da economia acreana, algo que o Censo 2010, que vai direto à fonte, deve confirmar e ampliar. Vale lembrar que "Contas Regionais" é obtida pelo cruzamento de dados de várias instituições, entre elas a Receita Federal, e outras pesquisas do IBGE feitas por amostragem.

O que duvido muito é que o crescimento do PIB no Acre, no Brasil ou onde quer que seja signifique melhoria da qualidade de vida, que parece ser o objetivo perseguido pelo governo e pelos jornais. Estes últimos pregam fervorosamente que a empregabilidade teria como efeito secundário uma desejável redução da violência, esquecendo que trata-se de mitologia tão antiga quanto absurda.

Que tipo de amnésia coletiva impede de observar que os maiores índices de violência estão justamente nas cidades mais ricas? Qual o melhor setor da sociedade para saber disso, senão os jornalistas?

O que reduz a violência não é crescimento econômico, é desconcentração de renda, algo longe de ocorrer no Acre. Vide o Índice de Gini, que mede a disparidade de salários entre as classes mais ricas e mais pobres. "Contas Regionais" infelizmente não traz essa estatística, mas a "Pesquisa de Orçamentos Familiares" (POF), na qual ela se baseia, afirma que esse índice é um dos maiores do País: o Acre ocupa a vice-liderança de disparidade de renda do ranking nacional.

"Contas Regionais", por sua vez, explica que a renda per capita do acreano é R$ 8.896,16. Isso é quanto a produção de riquezas daria para cada um se fosse dividida em partes iguais entre aqueles que a produziram. E antes que me classifiquem elogiosamente como bolchevique, atenção: não estamos falando de bens de propriedade, mas da produção de riquezas no intervalo de um ano (cerca de 742 reais para cada indivíduo ao mês, incluindo bebês, aposentados etc)!

Por que não se vê essas coisas nos jornais?

Por que não nos informam, por exemplo, que quanto mais estratificada for a economia, maior a disparidade entre as classes sociais, logo, maior a exclusão, maior a violência interpessoal (sem contar danos ambientais, psíquicos) etc? Não há dados sobre isso?

Por que não mostrar que a hierarquização econômica, que sempre exitiu no Acre (esse Estado nasceu assim, aliás, para quem não lembra, nasceu para isso) é que produz a violência? Que pessoas, tratadas como coisas, tendem a relativizar as noções comezinhas da ética do seu próprio grupo social? Não há exemplos a respeito, estudiosos a quem entrevistar?

A própria pesquisa dá subsídios para análises mais atentas. No campo, enquanto as atividades agropecuárias conduzidas por grandes produtores ou pequenas propriedades com dinheiro do Estado cresceram 14,7%, a indústria extrativa no mesmo período teve retração de 10,5%. Que fenômeno é esse? Não seria o caso de se perguntar qual o destino desses produtos antes de comemorar a gloriosa colocação do Acre no-ranking-de-crescimento-do-pib-nacional?

A diferença básica entre o agronegócio e a indústria extrativa é que a primeira produz e vende matérias-primas, as famosas commodities, com nenhuma ou pouquíssima agregação de valor, emprego ou circulação de renda. É uma economia concentradora e praticamente parasitária, que só beneficia o proprietário e meia dúzia de apaniguados. Junte-se a isso os créditos generosos do governo, o modo de produção insalubre da maioria das fazendas amazônicas - que a crônica jornalística, pelo menos a antiga, conhece bem - e temos a explicação parcial dessa "pujança".

Já a indústria extrativa é aquele setor pelo qual se originou esse pedaço de chão e foi responsável por grande parte dos conflitos no campo, especialmente nos anos 70. Caracteriza-se pela inclusão da economia familiar, pelo modo de produção arcaico, pela concorrência com a borracha sintética e todos aqueles motivos que a levaram à falência em meados dos anos 80, produzindo as periferias de Rio Branco e adjacências.

Contrariando todo o discurso de "refundação da cadeia produtiva extrativista para fornecer às multinacionais", alardeado pela Frente Popular do Acre (FPA), um formidável baque atingiu o setor no mesmo espaço geográfico em que viceja poderosamente o agronegócio (o IBGE inclui aí o setor madeireiro). Isso não é notícia?

Vivemos um período de transformações salutares na economia e no modo de vida acreano. A concentração de renda, já imensa, tende a crescer e com ela ampliar a violência urbana, o tráfico de drogas como alternativa de renda, a prostituição infanto-juvenil etc. Cada vez mais o desenvolvimento sustentável prometido pela FPA coincide com a sustentabilidade do desenvolvimento, isto é, em manter os números da economia em contínuo crescimento. Ou seja, como dizia o sábio Salomão no livro de Eclesiastes: "Não há nada novo debaixo do Sol".

Alguém duvida?

Uma certa editora-chefe, diante de pesquisas como "Contas Regionais", instruía os repórteres a enfatizar os números "positivos" e minimizar ou mesmo omitir os "negativos". Dada a função lobbysta da imprensa acreana é uma atitude até comum, embora antiética. Mas pode-se pensar: qual a extensão dos danos dessa mistificação?

Em benefício das aparências, como dizem, papel aceita tudo. O problema é a realidade.

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