quinta-feira, 16 de maio de 2013

Chega de subjetividade - entrevista a Beatriz Sarlo

Denise Mota, na revista Trópico

Beatriz Sarlo: crítica ao excesso de importância dada a testemunhos para a compreensão da história

“Quando a lenda vira fato, imprima-se a lenda.” A máxima, ironicamente cunhada por John Ford em “O homem que matou o facínora” (1962), vem sendo obedecida com toda diligência pela história, e é por isso que está no centro da mais nova discussão proposta pela pensadora argentina Beatriz Sarlo em seu recém-lançado “Tiempo pasado, cultura de la memoria y giro subjetivo - Una discusión”.

Contemporânea e participante das transformações engendradas nos anos 60 e 70, Sarlo, quatro décadas depois, oferece um novo desafio: reconstruir o passado a partir de fatos, e não de lendas. Interromper o entendimento do testemunho como “ícone da Verdade”, como grafa à pág. 23 de seu livro. Escrever a história com eqüidade na valorização das fontes de informação. “Eu não confio mais na memória do que nas informações jornalísticas, nos programas políticos, nos livros”, afirma. “A memória, em geral, não expande as dimensões intelectuais de um período.”

O foco de “Tiempo pasado” (ed. Siglo XXI, 168 págs., 25 pesos argentinos -cerca de R$ 18) está posto sobretudo na compreensão dos anos de ditadura na América Latina. Em como -na falta de provas materiais que atestassem os crimes militares- o depoimento em primeira pessoa terminou por se transformar, de recurso para busca da verdade, em algo inquestionável, “sagrado” e visto francamente como superior a qualquer outra maneira de obter informação.

A autora não questiona a pertinência e o papel do testemunho para processos jurídicos e morais. O que debate é o porquê de a memória ter se tornado, nas sociedades contemporâneas, material sobre a qual recai maior dose de confiança. O porquê de o relato em primeira pessoa -relacionado à experiência vivida, seja diretamente aos fatos ou como vivência subseqüente- não estar submetido aos métodos de crítica, comparação e análise dedicados a outras fontes da história. “Não se pode prescindir do relato em primeira pessoa, mas tampouco se pode deixar de problematizá-lo. A idéia da verdade em si é um problema”, argumenta (pág. 163).

Essa “cultura da memória” é questionada por Sarlo em outros aspectos, para além da falta de rigor metodológico que lhe acompanha: a subjetividade natural a que está sujeita; as influências externas que modificam ou pelo menos condicionam o que é “lembrado” pelos participantes diretos dos fatos. Por terem vivido a experiência da qual trata a investigação histórica, recebem uma espécie de salvo-conduto para suas afirmativas e provocam um “giro subjetivo” na compreensão do passado.

Dessa maneira, a história passa a ser erigida por visões individuais, e não pelo acúmulo de dados provenientes de diversos registros e instâncias e que, por intensificar as possibilidades de compreensão do objeto em foco, o tornaria tanto mais complexo quanto completo. Cita Susan Sontag (pág. 26) para deixar clara a pulsão de seu livro: “É mais importante entender do que recordar, ainda que para entender seja necessário, também, recordar”.

A pesquisadora apresenta sua preocupação quanto ao império do depoimento já na capa de “Tiempo pasado”. Nela, o cineasta iraniano Abbas Kiarostami olha pela nesga de uma porta quase fechada. Ao seu redor, as colinas de Teerã se erguem, altaneiras, aparentemente infinitas. Seu olhar, no entanto, alcança somente uma ínfima parte dessa vastidão: a porção que lhe é permitido vislumbrar pelo vão de uma porta que nem mesmo totalmente aberta está.

Beatriz Sarlo propõe a derrubada dessa porta, para que a história tenha condições de fazer o passado surgir tão amplamente quanto lhe seja possível apresentar-se.

A autora bonaerense de 63 anos, professora de literatura argentina por duas décadas na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e diretora, desde 1978, da revista de cultura e política “Punto de vista”, conversou com Trópico sobre seu livro.

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A capa de “Tiempo pasado” mostra Kiarostami olhando a paisagem através de uma porta semi-aberta. Reescrever a história a partir da memória seria ter essa visão parcial de algo muitíssimo mais amplo e importante que nos cerca?

Beatriz Sarlo: Gostaria de me referir primeiro à foto de Kiarostami: nela um homem se esforça para olhar pela fenda de uma porta que, na verdade, não está sustentada por nenhum muro, nem à esquerda nem à direita. Se esse homem girasse sua cabeça para os lados, poderia perceber o extenso território que o rodeia e que ele decidiu captar somente através de uma brecha. Acredito que a fotografia trata basicamente sobre o ponto de vista: alguém, que pode ver a partir de outras perspectivas, elege o lugar de visão que lhe parece mais significativo; além disso, como se de uma pequena fenda semi-aberta, ela enquadra a paisagem que é o seu objeto.
Escrever uma história (de ficção ou do que aconteceu no passado) implica sempre a eleição desse ponto de vista de onde se vêem alguns objetos e de onde provavelmente outros se percam. O historiador, assim como o novelista, é consciente dessa eleição, do recorte e das elipses. No caso da memória em primeira pessoa, a eleição se dá de antemão: o eu de quem recorda é a fenda entre as duas partes da porta.
Não se trata de uma escolha, mas de um lugar de enunciação desde o momento no qual se decide falar em primeira pessoa. E muitas vezes esse lugar do eu não é objeto nem de crítica nem de reflexão porque se considera que está investido da autoridade de “quem viveu” a história.

Se a história contemporânea vem sendo entendida a partir de testemunhos e se há uma proposição em seu livro de que a memória seja ferramenta de compreensão, mas não a única prova, isso quer dizer que a história que foi reconstruída a partir de depoimentos não tem solidez?

Sarlo: O que trato de apresentar em meu livro é que uma reconstrução feita somente a partir da memória é insuficiente e provavelmente muito menos rica do que uma reconstrução que trabalhe com todas as fontes possíveis: não só testemunhos, mas também as fontes escritas, que são indispensáveis para a compreensão do movimento das idéias na história.
A memória não só está ancorada na primeira pessoa mas também permanece carregada de todos os rasgos de subjetividade. Inclusive quem, já idoso, recorda o passado, tem uma visão que pode se inscrever no modo nostálgico da reconstrução. “Éramos jovens, idealistas e revolucionários”: esse tema que se repete, no caso argentino, quando falam os protagonistas dos anos 60 e 70.
Eu não confio mais na memória do que nas informações jornalísticas, nos programas políticos, nos livros de onde saíram as idéias que mobilizavam esses jovens. A memória, em geral, não expande as dimensões intelectuais de um período, como a da radicalização política na América Latina, que apoiava suas ações, suas táticas e suas dissensões em livros.
Pessoalmente, me interessa mais e me parece mais significativa a repercussão e a expansão das teses sobre a dependência de Cardoso e Faletto do que a forma em que hoje um ex-militante conta uma história política. Eu quero saber por que a pequena burguesia de origem universitária tornou-se peronista revolucionária e procuro no mundo das idéias porque aí há chaves que não aparecem quando alguém rememora “minha primeira ação política”.
No entanto, os fatos do terrorismo de Estado somente são acessíveis por memórias de testemunhas e sobreviventes, porque não há outras fontes, já que os militares responsáveis as destruíram. Onde não há outras fontes, o testemunho é essencial.

A realização de julgamentos como os que estão sendo enfrentados por Pinochet, ainda que possa reparar juridicamente parte de uma história que se sabe de arbitrariedade, e que seja ferramenta para a democracia, é uma medida de bases históricas frágeis, porque pouco precisa e/ou parcial?

Sarlo: Os julgamentos que foram feitos na Argentina às três juntas militares fundaram a democracia, já que colocaram em um cenário social espetacular os crimes da ditadura. Apesar dos retrocessos e indultos, outros julgamentos continuaram a buscar não somente uma verdade mas também uma condenação.
Nesse sentido, o caso argentino é muito singular. Em outros países da América Latina, funcionaram comissões pela verdade, cujas descobertas não foram à Justiça porque havia pactos políticos que impediram que chegassem ali ou, simplesmente, como no caso do Uruguai, porque em um plebiscito se impôs a posição de que não houvesse julgamentos. Esse plebiscito aconteceu em um momento muito turbulento na Argentina, com insurreições militares devido à condenação dos responsáveis pelo terrorismo de Estado, e provavelmente muitos uruguaios acreditaram que essa instabilidade chegaria a seu país se tivesse início uma etapa de julgamentos.
O caso do Chile é diferente, já que aí a democracia levou quase 15 anos para julgar Pinochet, que não havia se retirado do governo derrotado e sem forças, senão que conservava peso militar e civil.

Fatos da história recente, como o 11 de Setembro ou a Guerra do Iraque, receberam massiva atenção midiática, em um cenário que entendemos como de liberdade de expressão, com diversificação de fontes. Na sua análise, a memória terminou por ocupar preponderância no que se refere a fatos dos anos 60 e 70, mas esse protagonismo tende a perder força quanto mais avancem as possibilidades de produção e de alcance da informação?

Sarlo: A memória e as histórias orais têm peso preponderante quando não há outras fontes, como mencionei anteriormente. A respeito de fatos contemporâneos, em que as fontes são de diferentes tipos, as memórias pessoais têm que ser confrontadas com a massa de informação que sai dos meios escritos e de toda outra forma de conservação dos acontecimentos.
Existem modas, e portanto não sabemos como se construirá, daqui a meio século, a história do nosso presente. A história oral tem muita importância hoje, porque se ocupa de e deixa que se escute a voz de sujeitos que antes eram invisíveis, mas é impossível saber se as tendências da história continuarão a reconhecer à história oral esse lugar de primeira linha. Quando se observa como vem sendo escrita a história nos últimos dois séculos, descobre-se que ela teve diferentes poéticas, diferentes esquemas narrativos, diferentes estruturas de personagens etc.

De forma bastante cautelosa, a sra. reforça em diversos momentos de seu livro a importância dos testemunhos como fonte insubstituível para reparação jurídica, social e moral, particularmente quando trata das ditaduras na América Latina. No entanto, também deixa claro que o depoimento em primeira pessoa não é superior frente a outras fontes de informação. Preocupou-lhe que a discussão proposta por “Tiempo pasado” não fosse entendida com a necessária serenidade, ainda mais dadas as circunstâncias atuais de seu país, que, assim como o Uruguai, continua a debater publicamente e a investigar os crimes da ditadura?

Sarlo: Sabia que estava escrevendo um livro que ia na contramão de um discurso progressista oficial sobre o passado recente. Hoje o discurso que prevalece é o de uma memória mais ou menos idealizada dos anos 60 e 70, como se, para manter a condenação ao terrorismo de Estado, fosse necessário montar uma versão não completamente detalhada e explícita de quem fomos aqueles que fizemos parte da esquerda política.
Para evitar a chamada “teoria dos dois demônios” (que afirmaria que o terrorismo de Estado foi simétrico ao terrorismo de guerrilha, o que é um absurdo porque jamais a responsabilidade do Estado pode ser comparada à de um cidadão), difunde-se uma versão da década de 70 em que a violência política de esquerda permanece sem ser questionada e não é submetida a críticas, salvo a exceção de Pilar Calveiro (ex-militante de esquerda argentina, pesquisadora e doutora em ciências políticas pela Unam – Universidade Nacional Autônoma do México; autora de livros como “Politica y/o Violencia”, 2005).

Ao final de “Tiempo pasado”, a sra. aponta a literatura como expressão em que se olha de fora para dentro, “como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não somente padecê-lo”. É humanamente impossível transformar um pesadelo pessoal em ferramenta para a vida?

Sarlo: Não sei o que pode ser essa transformação. Mas sei que a densidade formal e semântica da literatura permite ver a própria experiência “como se estivéssemos distante” e, portanto, permite refletir um pouco.

Está definitivamente abandonado seu projeto de fazer uma biografia intelectual das décadas de 60 e 70, idéia que está na origem da investigação que resultou em “Tiempo pasado”?

Sarlo: Ainda estou muito próxima de “Tiempo pasado”, envolvida com a discussão do livro. Deverão passar alguns anos antes que, sem a pretensão de estabelecer alguma verdade, talvez tome a primeira pessoa. Mas inclusive, se passarem esses anos, não tenho certeza de que vá fazer isso. Penso (e isso é completamente pessoal) que somente toleraria usar a primeira pessoa se conseguisse construir uma escrita em torno a isso. E quem pode prever que vai conseguir fazer uma escrita do eu?

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