domingo, 25 de janeiro de 2009

ESQUADRINHANDO NIETZSCHE

O texto a seguir é a tradução para o português de uma conferência proferida pelo filósofo contemporâneo espanhol Julián Marías, que, seguindo o seu estilo, não usou roteiros escritos. Conferência do curso "Os Estilos da Filosofia", Madri (Espanha), 1999/2000.

Boa noite. Hoje vamos falar de Nietzsche, figura complexa, interessante, com uma certa anormalidade - tínhamos visto uma certa anormalidade, digamos, genial, nos últimos anos de Comte; também houve uma certa anomalia, não muito grande, em Kierkegaard; a anomalia em Nietzsche foi muito mais grave.

Friedrich Nietzsche nasceu em 1844. Teve uma rápida carreira de filólogo, foi professor de Filologia Clássica em Basiléia. Depois deixou a cátedra e dedicou-se a escrever; ele tem uma obra filosófica e literária muito importante. Em 1889 perde a razão e vive em estado de loucura - de grave loucura - por 11 anos: morreu em 1900.

Como vêem é uma vida anormal em muitos sentidos, é uma figura particularmente atraente, que teve um êxito muito grande, um êxito especialmente literário: era um grande escritor. Ele tinha um sentido profundamente arraigado da arte e da literatura. Foi uma figura que exerceu fascinação sobre muitos, em diversos países, muito particularmente na Alemanha, não somente porque era a sua língua, mas porque ele era um grande escritor em língua alemã.

Houve muitas traduções de Nietzsche, nem sempre boas, nem sempre seguras; freqüentemente se tem enfatizado o aspecto mais extremado que tinha a obra de Nietzsche, que teve, por exemplo, uma manifesta tendência à desmesura. Os senhores conhecem a famosa doutrina dos dois conceitos de Nietzsche, das duas tendências: o apolíneo e o dionisíaco. Ele falou longamente disto - evidentemente procede de sua cultura clássica, de seu estudo da língua grega e da literatura grega - e sua obra, em conjunto, oscila entre o que ele chamava apolíneo - ou seja, a medida, o equilíbrio, a serenidade - e o dionisíaco: exaltado, violento, apaixonado.

Esta influência - em grande medida literária - está além disso ligada a duas grandes devoções de Nietzsche. Uma delas é Schopenhauer, um grande escritor - eu acho que maior escritor que filósofo. Ele também tem um talento literário muito particular - lembrem a sua oposição (em certo modo pelo ressentimento… devido ao êxito enorme que teve na Universidade de Berlim) a Hegel. Mas, afinal, ele teve uma influência difusa, não tanto por sua doutrina, mas por seu talento de escritor. Nietzsche cultivou também - como Schopenhauer - um gênero interessante e um pouco duvidoso: o do aforismo. O dois foram dois grandes autores de aforismos. "Aforismos para a vida", dizia Schopenhauer; os aforismos de Assim falava Zaratustra, de Nietzsche.

Ele tinha escrito um livro inicial, um livro ligado a seus estudos clássicos em sua cátedra de Basiléia, O nascimento da tragédia, Die Geburt der Tragödie. Esse livro foi muito combatido pelos filólogos profissionais. Por exemplo, o mais famoso filólogo e de maior prestígio acadêmico da época, Wilamowitz Moellendorf, fez uma crítica muito dura a O nascimento da tragédia, que lhe parecia um livro caprichoso, inexato etc.

Mas os livros - livros apaixonados, sedutores - de Nietzsche foram lidos enormemente; nem sempre foram lidos filosoficamente, foram lidos como documentos biográficos, como formas de exaltação, como recreação literária.

O aforismo é um gênero particularmente atraente: são escritos breves, às vezes são frases fulgurantes, brilhantes, com expressões felizes; contudo, eu acho que a filosofia não aceita o aforismo, a filosofia tem uma certa resistência; porque o aforismo é como uma flor cortada, arrancada; ou seja, elimina-se a justificação - o aforismo não se justifica: o aforismo se formula, faz seu efeito, freqüentemente é refulgente, excitante… - mas a filosofia é essencialmente justificação.

A filosofia justifica o que diz. Lembrem a definição que eu cunhei há muitos anos: “a visão responsável”. Eu sempre acho que a filosofia é fundamentalmente visual, existem filósofos que são visuais e outros que não são - lembrem como falávamos que um dos filósofos menos visuais é Santo Tomás.

Tem havido grandes aforistas (não no sentido literal, porque são fragmentos de um livro que não chegou a escrever) como Pascal; Kierkegaard é aforista em grande parte de sua obra; Unamuno - na primera parte de sua obra - também o foi em alto grau - todos eles têm uma certa semelhança.

Schopenhauer de um lado, e, de outro, a música de Wagner. Wagner também é uma figura muito importante na vida e no pensamento de Nietzsche (entre parêntesis: Nietzsche gostou muito - como comenta em uma carta a Peter Gast, seu amigo - de “La Gran Vía”, a zarzuela espanhola. Cada vez me parece mais valiosa a zarzuela espanhola das últimas décadas do século XIX e a música é particularmente interessante e atraente mesmo que não tenha sido muito apreciada pelos profissionais, pelos autores que escreveram sobre música).

Grande parte das obras de Nietzsche são aforísticas, por exemplo: Para além do bem e do mal, Assim falava Zaratustra, A genealogia da Moral e uma que é particularmente importante, que teve influência muito grande, que se intitula: Die Wille zum Macht, A vontade de poder. Este título não é de Nietzsche; este título foi dado, em grande parte, por sua irmã e seus seguidores; as edições mais recentes costumam ter como título Nachlasse, O Legado. O título A Vontade de poder foi lançado numa época bem posterior à morte de Nietzsche, especialmente quando começava a dominar a ideologia do que seria mais tarde o nacional-socialismo. O título é de certo modo tendencioso, é um título da exaltação do poder, da vontade do poder, da capacidade de afirmar-se, do homem que se afirma como poderoso, como enérgico e tudo isso forma uma exaltação de tudo que é militar, guerreiro… que teve grande prestígio na época. Mas o título, insisto, não é de Nietzsche e provavelmente cabem interpretações diferentes dessa obra bastante diferentes da habitual.

Nietzsche trata de defender a atitude dos poderosos, dos homens fortes; é muito profundamente hegeliano; vai contra a compaixão, a piedade com os necessitados; crê que tudo isso é contrário à exaltação da vida, que é contrário aos valores vitais. É curioso que essa exaltação de tudo que é enérgico, poderoso, triunfador em Nietzsche, dá-se ao longo de uma vida em que a realidade de Nietzsche é bem o contrário da exaltação do poder enérgico e dominante.

A idéia da compaixão, da tolerância, da piedade, tudo isso lhe parece bastante desagradável e condenável. O que ocorre é o seguinte: a época em que Nietzsche vive, de 1844 a 1889 (é a época de sanidade, depois já começa a loucura e deixa de escrever e deixa de existir como pensador), há o domínio de uma religiosidade oficial muito institucional - não esqueçam a atitude de Kierkegaard, há muitas semelhanças…

Já em 1933 ou 1934, desde o momento em que acaba de triunfar o nacional-socialismo começa uma espécie de culto a essas formas de exaltação da vida enérgica, poderosa: não esqueçam da expressão muito famosa de Nietzsche “a moral dos senhores e a moral dos escravos”, há a Herrenmoral e a Sklavenmoral, a moral dos homens passivos, inferiores, débeis, os quais ele, afinal, despreza.

Também é de Nietzsche a frase, digamos, escandalosa: Gott ist tot, Deus morreu. Eu recordo que - faz pouco tempo que esta frase voltou a ficar na moda - em uma parede de New York alguém pintou um grafite que dizia: Gott ist tot - Nietzsche, ao que um terceiro acrescentou: Nietzsche ist tot - Gott.

Esta idéia de moral do homem enérgico, de certo modo implacável, se contrapõe precisamente à moral da resignação, da passividade, da compaixão, para Nietzsche isto parece uma certa negação da vida.

Não esqueçam que em Nietzsche há uma mudança de atitude, uma espécie de inversão do pensamento de seu admirado Schopenhauer. A obra de Schopenhauer é uma obra fundamentalmente pessimista. Afinal - além de umas raízes de hedonismo - é a abolição da vontade de viver, é a maneira de evitar o sofrimento… Toda essa atitude de Schopenhauer é de certo modo invertida por Nietzsche. Nietzsche afirma o que ele chama de os valores vitais. Os valores de exaltação da vida, uma atitude triunfalista, uma atitude de domínio e de plenitude. Mas - ao mesmo tempo - isso também não é totalmente assim. Porque há um conceito capital no pensamento de Nietzsche que é o que ele chama Umwertung alle Werte, a transmutação ou transvaloração de todos os valores. Há, portanto, uma vontade de renovar as valorações dominantes e vigentes, o que chama de transmutação ou - mais literalmente - transvaloração de todos os valores. Como vêem, há uma vontade de renovação, de transformação, de mudança de sentido no quadro das idéias e na visão geral da vida.

Por outro lado há uma crítica ao Cristianismo do ponto de vista do que ele chama “o ressentimento”. O ressentimento é um conceito muito importante em Nietzsche e ele acredita que o Cristianismo é uma atitude ressentida: é a atitude do homem que é débil e acaba por aceitar a submissão, a debilidade ou a piedade; que aspira a uma espécie de aceitação dos fortes. E isto faz com que ele veja o Cristianismo como uma forma de ressentimento.

Max Scheler repensou este tema muito mais tarde - 30 anos depois da morte de Nietzsche - e escreveu um livro muitíssimo interessante, O ressentimento e a Moral, e ele nega justamente que o Cristianismo seja uma forma de ressentimento. Isso lhe parece inaceitável, porque ele tem uma idéia de ressentimento diferente da de Nietzsche, e que eu acho mais justa, mais adequada. Para Max Scheler o ressentimento é a negação dos valores pela inversão dos valores. Lembrem, em outro dia nos referimos à doutrina do valor (a Werttheorie) que está sobretudo realizada por Max Scheler e por Nicolai Hartmann. Os dois pensadores tratam de fazer uma moral de certo modo contraposta à kantiana, ainda que conserve a característica fundamenal de Kant, que é a autonomia: uma moral que emane do sujeito, do próprio sujeito, que não seja heterônoma, que não seja uma norma ditada por alguém que não o próprio sujeito.

Max Scheler pretende conservar esta atitude de autonomia, mas aceitando ao mesmo tempo - o que em Kant não era possível - uma moral com conteúdo, uma moral que diga o que é que se deve fazer.

Lembrem como em Kant a moral é formal: ele busca um imperativo categórico, que mande sem restrição, incondicionalmente. Sempre que existe um conteúdo existe uma condição que alguém pode não querer cumprir; se alguém diz, por exemplo: "Não comas tais coisas porque vão te fazer mal”, alguém pode contestar: “É que não me importo que me façam mal…”.

O preço que Kant tem que pagar por essa autonomia da vontade é seu caráter meramente formal, porque não vai integrar conteúdos concretos, mas o como, por que motivo - por que máxima, dirá Kant - fazemos o que fazemos. Por isso o famoso livro de Max Scheler é uma Ética Material dos Valores. Ele busca a ética material, a ética que tem conteúdo e o conteúdo consiste na realização dos valores.

Pois bem, o contrário da moral, a forma suprema de atitude não moral ou anti-moral, é precisamente o ressentimento, que consiste na negação dos valores. Na negação dos valores ou na sua inversão. Suponham que alguém não realiza valores ou se oponha a eles: isto não seria propriamente ressentimento. Ressentimento é negar que aquilo seja valor. A bondade, a beleza, a elegância, a santidade ou qualquer valor é um valor. Ressentido é quem diz: “Não, não, é que não é um valor, não é desejável, não é valioso”. Ou então o inverso: colocar o valor inferior acima do superior; ou inverter a direção: tomar o negativo como positivo. Tudo isto é o que Scheler entende por ressentimento, de um modo muito mais agudo e certeiro que a idéia de Nietzsche.

De modo que, como vêem, entre Nietzsche e Scheler se produz uma mudança de orientação, de definição do que são valores e, por conseguinte, do ressentimento. Negação do valor, inversão dos valores ou alteração da hierarquia objetiva dos valores, isto é ressentimento. Quem diz: “Isto não é um valor, que bobagem! A beleza, a santidade, a bondade… nada disto tem valor”, é justamente isto que Max Scheler entende por ressentimento.

Como vêem, no fundo da atitude de Nietzsche está latente um equívoco: ele vê o Cristianismo a partir das formas sociais vigentes na segunda metade do século XIX. Formas que estão ligadas a uma série de concepções que não são propriamente morais - e certamente também não são religiosas - mas são antes sociais ou políticas. Considerem por exemplo a democracia. A democracia é uma tendência igualitária, que não afirma o grande homem poderoso, enérgico, afirmativo, criador, mas que supõe uma igualdade e supõe que há uma espécie de normas nas quais todos têm direito, qualquer forma de vida é aceitável, inclusive aquela que ele chamará de "a moral dos escravos".

O elemento de doação, de generosidade, de riqueza espiritual que existe no Cristianismo - no qual o homem se doa aos outros -, o conceito capital de amor efusivo do Cristianismo, isto, afinal, é o que Nietzsche não vê. O que ele vê é conformismo, submissão dos débeis frente à exaltação do poder, à vontade de poder. Esta atitude de certo modo também se nutre da contraposição - também ao gosto de Schopenhauer - entre os dois princípios persas - o bem e o mal, resumindo: o maniqueísmo - a do personagem Zaratustra de Nietzsche.

Como vêem é uma figura inquietante, que começa rapidamente a mostrar sinais de anormalidade e termina em loucura pura e simples - e desaparece como escritor - com uma boa dose de megalomania - há um livro dele que se chama O Anticristo e no final de sua vida ele assinava: o Anticristo, o que já significava que estava num terreno de anormalidade psíquica. E isto foi - em grande parte - uma das razões do sucesso de Nietzsche: é evidente que há uma espécie de fascínio que Nietzsche exerce por seu pensamento, em grande parte aforístico, que não costuma ter justificação racional, que é brilhante, fulgurante, mas que não tem esse caráter visual (que me parece tão necessário), não tem esse elemento de justificação, de prova - no sentido amplo da palavra, não tem que ser necessariamente demonstração - tudo isto afinal falta no pensamento de Nietzsche.

Principalmente depois de sua morte o impacto da obra de Nietzsche foi muito forte e um pouco ambíguo: em última análise não é fácil extrair um pensamento filosoficamente justificado, coerente, da obra de Nietzsche. Ela está repleta de afirmações valiosas, há nele essa idéia dos valores vitais, a idéia de valor que tem a vida como tal - certas dimensões, por exemplo, como o prazer, que lhe parece que tem um profundo valor - e que isso tudo reclama eternidade… Tudo isso exerceu uma influência muito forte, muito ampla, não propriamente filosófica, certamente não inteiramente racional, mas que foi, digamos, um grande estimulante.

A obra de Nietzsche passou para uma fase bastante diferente; agora tem sido objeto de estudo e, em boa medida, de estudo filológico. É curioso como o destino de Nietzsche de certo modo se inverteu: do estímulo da exaltação ao que é escandaloso, violento, apaixonado, passou-se a um estudo mais analítico de Nietzsche, a uma filiação de seus aforismos, a uma busca do sentido que tem precisamente esse pensamento erudito porque está cheio de perspectivas valiosas do pensamento grego.

Heidegger escreveu uma obra muito extensa sobre Nietzsche e ele evidentemente tinha um interesse puramente filosófico: é que existem certas intuições em Nietzsche que lhe parecem muito valiosas e têm conexão com o que haveria de ser a filosofia da existência (e que não é o Existencialismo, certamente: são coisas bastante diferentes). Há talvez uma última consideração propriamente filosófica, propriamente intelectual de Nietzsche, que é aquela feita por Heidegger em - isto é curioso - uma obra muito extensa, na qual lhe dedicou uma atenção surpreendente, porque a obra de Heidegger não se parece muito com a obra de Nietzsche, mas ele está presente em Heidegger que sente um interesse permanente por ele, retorna a ele, ainda que haja evidentemente diferenças muito grandes.

É interessante ao se analisar um grande filósofo - como é o caso de Heidegger - examinar também as suas raízes, de onde vêm? É evidente que vêm de Kierkegaard, dos idealistas alemães, vêm - muito mais do que parece - de Dilthey…

E é curioso como uma coisa são as raízes e outra coisa é a planta que delas brota. E - é um problema capital da historia do pensamento - o problema das raízes. Às vezes há uma inversão profunda. Às vezes há um autor que serve de estímulo e que conduz ao sentido contrário, outras vezes o influxo permanece soterrado, por baixo de uma superfície que aponta em outro sentido…

É o que acontece, evidentemente, com Husserl. Estou falando de filósofos sobre os quais vamos discutir nos próximos dias. É evidente que Heidegger é o principal discípulo de Husserl. E - como veremos - há um momento em que Husserl romperá com seus melhores discípulos - com Max Scheler, com Heidegger e com outros… - vai contrapor-se a eles, vai renegá-los de alguma forma. E o mais curioso desses casos é que Husserl, nas mãos dos fenomenólogos atuais, vai experimentar uma mudança de orientação e Husserl será considerado - nas últimas décadas - como sendo o contrário do que ele afirmava ser, precisamente no ponto no qual renegou os seus discípulos…

E é curioso como hoje há uma tendência, muito especialmente na França, que é atribuir a Husserl aquilo que ele combateu durante a maior parte de sua vida: precisamente a eliminação da redução fenomenológica, que para ele era ponto decisivo e capital…

Como vêem, as diferentes raízes de que lhes falava vão se entrelaçando, e às vezes apresentam mudanças que podem ser quase uma inversão do seu sentido original. E é curioso como nos filósofos que estamos considerando há profundas mudanças de atitude.

Nos próximos dias passaremos justamente ao estudo de Dilthey e Husserl.


Fonte: Site Hottopos de Filosofia (Editora Mandruvá).

Nenhum comentário: