segunda-feira, 21 de junho de 2010

O DIREITO À DÚVIDA

Causou furor uma postagem no Twitter inicialmente atribuída à candidata à presidência da República pelo PV, Marina Silva, sobre a morte do escritor José Saramago.

"Como podemos lamentar a morte de uma pessoa que blasfemou contra Deus a vida toda?", dizia o texto.


Não entrarei no mérito da confusão gerada pelo episódio, até porque a equipe de campanha da candidata já se desdobrou - confira aqui - para mostrar que tratou-se de um equívoco.

O que me chamou a atenção foi um problema filosófico esquecido no debate e que consiste no seguinte: qual é o nascedouro da concepção segundo a qual é possível contrapor o direito à fé pessoal ao debate crítico? Em outras palavras: como se pode conceber a validade do argumento que esgrima um valor pessoal - no caso, a fé - como critério para eliminar possibilidades de crítica?

Este foi, naturalmente, o argumento da "leitora" (e provavelmente, eleitora) de Marina Silva e que se inseriu no debate de forma curiosa: como a fé é um valor baseado na subjetividade da crença pessoal, a discussão que põe na berlinda os elementos constituintes desta fé (sua razão, sua racionalidade etc) é imediatamente tomada como um ataque à própria fé - daí a expressão "blasfêmia" usada no debate.

Punido com a morte, o crime de blasfêmia ocorria em várias legislações da Europa Medieval (inclusive após a Inquisição). Nos primórdios dos Estados Unidos, o
crime de blasfêmia proporcionou importantes episódios para juristas e estudiosos do Direito, sendo o mais famoso o que se tornou conhecido como o julgamento das bruxas de Salém.

Esta questão é importante porque trata do limite do debate contemporâneo entre dois preciosos direitos das democracias representativas: liberdade de expressão e liberdade de culto.

A chave do enigma está na natureza dessas liberdades. O argumento religioso, firmemente ancorado nas subjetividades da tradição e da interpretação, necessita de garantias legais para afirmar - sem que ninguém seja preso por isso - o que confere legitimidade ao seus pressupostos: a realidade, toda ela, seria a manifestação de um plano cuja natureza é divina. Logo, a realidade tal qual conhecemos seria não só enganosa (motivo pelo qual deveríamos desconfiar das certezas do mundo) como estaria imersa em uma dimensão inacessível ao homem devido ao problema do pecado - o que reforça, por sua vez, a necessidade de existência de uma divindade para governar um universo decaído, desfigurado.

O argumento religioso, portanto, é autolegitimado. Ele apresenta as condições, pela fé, da necessidade de existência da fé, o que leva automaticamente à necessidade de existência de um Deus.

O mesmo não ocorre com o argumento filosófico, já que é a filosofia, a "mãe de todas as ciências", a incumbida de lidar com questões dessa estirpe. Para a filosofia, a discussão sobre a religião possui a mesma validade metateórica de todas as discussões (sobre ética, razão, verdade etc), devendo apresentar, para ser aceita como argumento válido, as fontes racionais, os métodos de investigação do seu excurso cognitivo.

Mas a religião, fundada numa concepção "revelada" do mundo, não admite que se discuta a razão dos seus métodos, porque não a possui. É precisamente por não possui-la, uma vez que o significado da religião reside "na consciência do crente", que toda discussão sobre a religião é também um ataque ao direito de exercer a religião. O questionamento sobre a razão religiosa é tomado pelo religioso como um ataque ao seu direito de crer.

É daí que surge o argumento da "blasfêmia", por exemplo. É daí que surge também a resposta ao problema do embate entres liberdades de culto e de expressão: se a democracia é o espaço da construção da vida social, dos direitos coletivos e individuais e das possibilidades de rearranjo dos mecanismos de poder, como uma concepção "revelada" (e portanto, restrita, de interpretação particular) pode ser usada para interpretar e conduzir toda a dinâmica da vida social?

É evidente que esse arranjo não é possível. Não porque são concepções diferentes, mas porque são contrárias: a concepção religiosa da vida social só se concretizaria se planejasse recriar a sociedade à sua "imagem e semelhança". Ou seja: só se concretizaria se transformasse a política na realização do plano de Deus para o homem (que há um só Deus e um só Senhor, que a salvação só se dá mediante a conversão ao sacrifício de Cristo e que, por fim, este mesmo sacrifício dividiu a humanidade em dois grupos: filhos e condenados).

Ou seja, devido à sua própria natureza (da qual não abre mão para manter-se como tal) a concepção religiosa do mundo só se realizaria na política eliminando a democracia.

Mas, ainda bem, antes seria necessário vencer uma corrida à Presidência da República...

Um comentário:

Silva Mestiço da, disse...

"a concepção religiosa do mundo só se realizaria na política eliminando a democracia"
.
Finalização excelente, e é o que de fato ocorria antes do triunfo do iluminismo e ainda ocorre em maior ou menor grau até mesmo em "democracias" tais como os EUA.
Não existe o respeito a crença, a cultura ao modo de ser do "outro" quando se trata de religião, em especial no judaísmo e em sua derivações (cristianismo e islamismo). Tudo no outro é errado, blasfemo, do demônio... Apenas meu deus, meus santos, minha crença são corretas e aos demais a danação eterna.
Esse é o retrato cru, mas acuada pelo já citado iluminismo e em especial pela ascensão da compreensão materialista dialética da realidade, a religião buscou se moldar aos novos tempos, mas quase sempre trata-se de verniz encobrindo imperfeições que precisariam é ser lixadas...