sexta-feira, 25 de junho de 2010

OLIGARQUIA, MONARQUIA, TEOCRACIA

No Acre se pratica antipolítica.

De 1904 a 1961 o governo foi exercido por interventores, a maioria militares, nomeados pelo governo federal. Em 1962 chega ao poder o primeiro governador eleito, o petebista José Augusto de Araújo. Não dura dois anos. O golpe de 64 derruba ele e todos os governadores que ascenderam ao cargo por voto direto.

Somente em 1982, com o Acre em seu 78º ano de idade, os cidadãos elegem o primeiro governador que concluiria o próprio mandato: Nabor Teles da Rocha Junior.

Ou seja, de 1904 a 1981 o Estado forjou uma consciência política ao arrepio das tradições democrático-representativas. Mesmo as eleições de José Augusto e Nabor Júnior foram conduzidas por legislações eleitorais draconianas que inviabilizavam o direito ao voto livre (aliás, vale dizer, ainda hoje o voto não é livre no Brasil).

Em 2010 temos mais evidências do legado cedido por esse passado autoritário. O primeiro é Rodrigo Pinto, cuja candidatura ao governo do Estado, felizmente gongada por sua própria sigla (PMDB), fundava todo o seu programa político em um só argumento: ser filho de seu pai, o ex-governador Edmundo Pinto de Almeida Neto.

O argumento segundo o qual alguém deve ser eleito por ser filho do pai lembra as disputas pelo direito à sucessão nas monarquias medievais. Contra esse argumento pré-político, absolutista, bateram-se socialistas, republicanos, iluministas em geral: o poder passado pelo sangue não é só antipolítica, é um dogma. Daí porque ele só tem sentido em monarquias, dominadas por justificativas metafísicas para o poder do rei.

Nesta sexta-feira surgiu uma segunda evidência, ainda mais forte, desse legado: o argumento que cimenta a candidatura do apóstolo José Ildson ao cargo de vice-governador na chapa de Tião Bocalom (PSDB):

"Já fui contrário à mistura da política com religião. Mas observando algumas coisas que considero necessárias dentro de uma sociedade mudei meu ponto de vista. Trabalho num projeto chamado Transformação Mundo onde acompanhamos mais de 700 comunidades em vários países. Queremos usar esse critério de transformação social aqui também aqui na nossa cidade", disse o apóstolo ao repórter Nelson Liano Jr, da Gazeta do Acre (clique aqui para ler a entrevista inteira).

Ou seja, temos um candidato a vice-governador cuja maior contribuição para a vida coletiva é a sua condição privada: o fato de ser um homem de religião.

É um argumento do mesmo naipe do de Rodrigo Pinto. José Ildson não é inapto para o cargo de vice-governador por ser religioso. É antidemocrático pensar nesses termos. A compreensão da democracia como um processo de conversão a um "plano maior", no qual Deus redime os pecadores e instaura uma ordem social dividida entre filhos e ímpios, é que invalida não só a democracia, mas toda a política.

Pode parecer um papo muito filosófico, mas o efeito concreto desta inversão surge e afeta a vida de todos. Questões fundamentais, como aborto, eutanásia, pena de morte, anencefalia, células-tronco, evolução das espécies e outras, são historicamente analisadas pelo cristão-político sob o prisma da fé, não segundo o critério da utilidade social (que seria o critério democrático).

Já escrevi sobre isso aqui, mas não custa repetir. Religiões, especialmente as salvacionistas, não podem ser alçadas à vida social porque não a compreendem. Para o cristão não há ordem social "neutra": o mundo, mesmo o mundo político, é pecador ao não converter-se ao Senhor Jesus e esta condição pecadora é a responsável por toda sorte de "iniquidades", cabendo ao religioso, como filho e herdeiro de Jesus, impor ao mundo a única moral capaz de salvá-lo do pecado: a moral da conversão, ou seja, a própria moral religiosa.

Esta concepção aparece claramente nas declarações do candidato. Sem entrelinhas.

O defeito desse arranjo é que ele impõe uma visão particular a todo o processo social. Em nome da Moral Correta, impõe a conversão. Em nome do fim da iniquidade, exige a submissão de todo o tecido social a uma Ordem, sendo esta pertencente uma visão religiosa, por sua vez ligada a uma instituição eclesiástica.

Esta visão inescapável (totalizante, se quiserem) possui um nome pouco conhecido nas crônicas de nossos tempos. Chama-se Teocracia, que na minha opinião (e na de muita gente mais séria que eu) é o risco mais latente em nossos dias. Não por acaso, em sociedades mais longevas que a nossa, e igualmente sem tradição de desenvolvimento democrático-representativo, é precisamente este o regime político. Na África, no Oriente Médio, na Ásia e mesmo dentro dos Estados Unidos (como pequenas comunidades independentes), esta é a acepção política mais comum.

Com todo o respeito aos cristãos e seu direito à liberdade de culto: democracia é espaço da deliberação coletiva. Religião é o espaço da fé individual. A primeira pode auxiliar e garantir os direitos da segunda (os direitos de expressão, de organização, de liberdade etc), mas a segunda, por ser incapaz de conceber uma ordem social inteira fora da polarização Filhos X Ímpios, não pode administrá-la sem enormes riscos à democracia e, no limite, a si mesma.

Tendo em vista o nosso triste legado, descristianizar a política acreana é o primeiro passo para desfascistizar a sociedade. O primeiro de uma longa, longa caminhada.

3 comentários:

Joana D'Arc disse...

Irretocável,Ousado,Contemporâneo e
Local,Realidade Que temos De Viver
e Conviver...Sendo o Brasil LAICO,
Políticos de Todos os Segmentos Não
Conhecem Sequer o Termo: CIDADÃO e
Incorporaram Discurso Popularesco!!
CIDADÃES e CIDADANIA Globalizados..
Sem Saber Significados,Escritas...
Parabéns Pela AULA CONTEMPORÂNEA!!!

JOANA D'ARC VALENTE SANTANA, EU SOU

sandraamertens disse...

Parabéns pelo texto, mas isso ocorre aí no Acre mas aqui no Rio Grande do Sul não é muito diferente. Tb temos as heranças políticas como uma dinastia , mas em geral eles se dividem em partidos diversos para sempre estarem no poder.

Um grande abraço Josafá

E.Figueiredo

Jozafá Batista disse...

Sim, oligarquias existem em todo o Brasil. O que não é comum é alguém argumentar que deve ser eleito por ser filho do pai, que é o argumento mais oligárquico de todos: com isso afirma-se que a competência política é passada geneticamente, de pai pra filho.
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O argumento religioso é similar: a política é o espaço onde se realizam os "valores dos filhos de Deus", colocando os valores do homem ímpio como pecados, logo, negativos, porque se devem ao orgulho e à falta de fé.
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E o povo, gado, vota em coisas assim.