segunda-feira, 2 de agosto de 2010

PSICOPATIA E CAPITALISMO


Contra tudo e contra todos, mesmo com a virulenta uniformização da linguagem que insiste em se colocar acima da criatividade como um deus ex machina, alguns jornalistas acreanos teimam em produzir textos pessoais, com marca e estilo próprios, fugindo do fascismo estilístico implantado no Acre desde que os Diários Associados, de Assis Chateaubriand, fundaram por aqui o jornal O Rio Branco com amplo apoio dos generais de 64.

Alguém pode argumentar que a criação de O Rio Branco, em 1969 (três meses depois do lançamento do Ato Institucional Nº 5) representou um avanço em relação ao jornalismo anterior, fundado mais nos mexericos do colunismo social e nas trocas de farpas entre políticos de situação e oposição. Se alguém tiver a pretensão de fazer isso, por favor, siga o meu conselho: comece a ler os jornais atuais.

Antes que divague demais e perca o fio da meada, convém fazer jus ao título da postagem de hoje explicando que o motivo de tantos rapapés é a matéria "Psiquiatra cobra Hospital de Custódia no Acre", que a minha colega - e desde o ano passado, bacharel em Direito - Dulcinéia Azevedo publicou neste domingo em A Gazeta.

Trata-se, como verá o leitor menos ocasional, de uma verdadeira "puxada de orelha" no poder público, como convém ao bom jornalismo. Um tapa com luva - de mecânico de ônibus. Como se faz isso? Com preocupação social - leia-se: abandonando a idéia de que jornalismo é isento (outro legado fóssil da Ditadura). Escrever sempre tem um lado, já que trata-se de uma transposição do real. Ao escrever, recria-se o mundo por meio de palavras, e o universo de significados existente nessas palavras dependerá da amplitude de referências do leitor.

Isso não deveria ser assunto novo, mas infelizmente é, pelo menos aqui na terra-de-galvez-e-chico-mendes. Assim como será em breve a constatação de que o princípio da isenção jornalística, quando aplicado numa economia de mercado, favorece a voz do proprietário do jornal. A ideologia da isenção, no capitalismo, beneficia o veículo que a propaga.

Mas isso é questão para outro debate. O debate de momento, ainda no fluxo da onda de violência que invade o Acre sustentável, é o problema da psicopatia. Após o assassinato da Ana Eunice, várias matérias da imprensa local parecem sugerir que um dos muitos gargalos da segurança pública seria a proliferação de psicopatas, dada a truculência com que muitos desses crimes são cometidos.

discordei antes, mas vou agora, baixada a poeira, repetir e melhorar o argumento. Pra mim o problema fundamental da violência é de ordem ética: se o regime político é democrático e todos os cidadãos são iguais em direitos e deveres, mas dividem-se em classes, sendo a mais numerosa aquela formada por indivíduos cujo único poder é o de vender a sua capacidade de trabalhar para outra classe (algo que aproxima-se muito da história da Galinha dos Ovos de Ouro), logo, a violência é uma resposta óbvia, até meio lógica, à redução miserável das expectativas de vida.

Assim posta, a questão parece recair inteiramente no lombo dos pobres. É outro engano. A violência se estabelece quando o processo de produção da cidadania, o chamado "contrato social", é substituído por um sonoro "salve-se quem puder!". Esta substituição cria desníveis de cidadania (precisamente o contrário do princípio da isonomia jurídica), e inverte a máxima de Kant, que dizia que as pessoas não devem jamais ser tratadas como meios, mas como fins. No nosso marco político-econômico, os indivíduos são exclusivamente meios para se atingir coisas, como poder e dinheiro. Logo, a conduta da manipulação de meios, para a obtenção de coisas, em detrimento dos valores civilizacionais, é um princípio tido como válido eticamente e ainda celebrado como um grande trunfo da própria civilização! Vê-se então que trata-se de um problema amplo, processual, que nada tem de inerente à condição de pobreza (ainda que a coloque em um tipo de "faixa de risco ético").

Mas a questão é: como esse ambiente poderia não ser propício à produção da psicopatia?

Tenho ainda outra discordância. Mesmo que a psicopatia seja, nos termos da matéria da Dulcinéia, "agravada em ambiente desfavorável, ambiente familiar desestruturado, condições econômicas desfavoráveis" (ou seja, todas as características das sociedades contemporâneas, pelo menos em sua maior parte), penso que seria um grande perigo dar ao Estado o poder de separar pessoas de suas famílias pelo fato das primeiras serem "desobedientes às normas" ou "incapazes de se ajustarem socialmente".

Se eu estiver errado por favor me contestem, mas este me parece um passo, um passo grande - um pulo mesmo - na direção do fascismo...

Não era o cerne do nazismo o argumento do desajuste biológico para motivar e embasar "cientificamente" a perseguição a judeus, homossexuais, comunistas etc?

A ditadura brasileira utilizava a expressão "terroristas" em seus panfletos para designar a ação dos militantes de esquerda na luta contra os golpistas militares que derrubaram um presidente eleito e tomaram o governo do País (aliás, muita gente colaborava, e não duvido que colaborassem ainda hoje, para dedurar os filisteus comunas).

Nos EUA, o macartismo perseguiu, torturou e matou durante mais de 20 anos uma quantidade até hoje não revelada de "desajustados sociais" cujo único demérito era exatamente discordar do sonho dourado do American Way of Life, esse pesadelo mundial que é hoje compartilhado por todos, desde indígenas acreanos até a classe média dos próprios EUA.

Quero aproveitar e dizer que nos termos da normalidade (norma, regra) da nossa época, eu sou mentalmente incapaz de compreender muita coisa. Começando pela política, algo bizarro pra mim. Não consigo entender, nem aceitar, o motivo de uma democracia não ser democrática. Não me desce goela abaixo, nem com mil leituras de Alexis de Tocqueville, Hannah Arendt, Norberto Bobbio, dentre outros, a natureza corporativa do argumento segundo o qual a medida de uma sociedade democrática é o fortalecimento das instituições representativas, ao invés da própria democracia.

Logo, também não tenho a menor vontade de me ajustar ao que é considerado "socialmente justo", não quando o poder de exercer esta justiça não pertence a mim e deve ser comprado. Também não creio que o princípio da liberdade de ação, sob o qual formulou-se historicamente o direito à exploração de uma classe sobre a outra, seja algo verdadeiro, dados todos os argumentos acima.

Falando nisso, não acho que uma sociedade cindida entre proprietários e apropriados seja livre. E me parece forçoso mesmo dizer que sejamos uma sociedade, mesmo no sentido mais raso do termo. Se a política é o espaço da vida social, coletiva, é nela que se deveria tratar questões como liberdade, empreendimento, ethos público etc, pois estas coisas devem ser postas como direitos para o exercício da cidadania plena, não como mercadorias.

É isso o que temos hoje? Absolutamente, não. Hoje, as questões que deveriam ser discutidas pela política passaram a depender do indivíduo "livre no mundo", e a política tornou-se um estorvo, até mesmo um incômodo, para os indivíduos que impõem aos outros a sua liberdade. A "gratuidade" da política é insuportável para a concepção privada, mercadológica, que dilui a natureza em relações de custo-benefício. E como a própria política, ou os políticos, sucumbiram a esta concepção bizarra e antiética, potencialmente genocida e fratricida, o resultado não é outro: violência.

Produzir uma sociedade livre, de psicopatas ou de exploradores (ou de ambos), é condição e o próprio processo de redução da violência, tornando mais clara a identificação da psicopatia e de outros transtornos de personalidade hereditários. O capitalismo, tal como subsiste hoje, inviabiliza a localização do comportamento psicótico, pois assemelha-se a ele e, no limite, depende dele e o reproduz em série.

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