quinta-feira, 14 de outubro de 2010

MOISÉS

O deputado estadual Moisés Diniz (PCdoB) publicou um excelente texto que leva à reflexão sobre o aborto pelas lentes poderosas da metáfora literária.

É um retrato vivo, até mesmo emocionante, da subjetividade que ampara o nosso tempo e as nossas convicções quanto a questão é a interrupção violenta da vida de uma nova promessa de ser humano.

Quero dizer, em primeiro lugar, que a construção literária é tão poderosa que eu tive a exata impressão de mudar de opinião no instante em que imaginava a pequena Lia no útero materno, a pequena guerrilheira da vida na batalha contra o poderoso Cytotec.

Como comentei no Blog do Altino, Moisés tocou numa dimensão da questão, que é a dimensão ético-moral. Somos seres que criam valores, isto é, pensamento simbólico aplicado a julgamentos de valor (moral social). Estes julgamentos são necessários para diferenciar práticas nocivas e práticas válidas na reprodução social. Na dimensão ético-moral, as sociedades disciplinam os indivíduos por meio do cultivo de valores de forma a permitir a si mesma o máximo de funcionalidade e exequibilidade.

É neste ângulo, inteiramente sociológico, que eu tendo a acrescentar algumas reflexões ao belíssimo texto do Moisés.

Não discordo que a vida tenda a defender a si mesma, refuncionalizando todos os ataques para elaborar mecanismos de defesa, muitas vezes frágeis. Toda a história da vida, como bem afirma o Moisés, é exatamente a história dessa epopéia.

Também não discordo que há um imenso conflito biológico e psicológico no ato de abortar, para a mãe e para o embrião. Pode não parecer, mas a celeuma atual em torno da questão deve-se, entre outras coisas, a esse conflito. A ética social, por ser um aprendizado social constante, não está isenta das lições derivadas do confronto com a natureza e seus reveses.

Mas a questão fundamental que devo acrescentar é que idéias não criam realidades. As idéias, que a dimensão ético-moral integra, são valorações simbólicas da realidade, interpretações da mesma.

Dois pontos são então nevrálgicos no meu raciocínio ainda favorável à descriminalização do aborto no Brasil.

Em primeiro lugar, toda a agonia psíquica das mulheres no momento de interromper um novo ciclo de vida. Não acho difícil, se pedirem, uma mulher construir um texto belíssimo como o do Moisés, na forma de uma carta de despedida. Abortar é errado, antibiológico, as mulheres que o fazem sentem, sofrem, e por isso - graças aos valores que permeiam a vida social, e portanto, esta mulher - não há nem pode haver prazer em interromper uma gravidez.

Temos, então, um sofrimento biológico e também sociopsicológico para a mulher que aborta.

Outra reflexão fulcral é a dimensão médica da questão. Milhares de mulheres (12 por hora, segundo o Ministério da Saúde) morreram em 2009 devido a consequencias de abortos sem acompanhamento médico. Clique aqui para ler.

Ou seja, independentemente do que decidirem a respeito da descriminalização, o problema continuará matando mulheres porque é crime, na nossa legislação, abortar exceto nos casos previstos em lei.

Esta contradição é interessante porque mostra duas coisas: primeiro, é perfeitamente possível ser pessoalmente contra o aborto pelas questões ligadas à normatização ético-moral, e devido à questão latente da saúde pública (saúde feminina), diante do elevado número de mortes, ser totalmente a favor da descriminalização.

Suponho que este seja o posicionamento da candidata do PT à presidência, Dilma Rousseff.

É o meu também.

Infelizmente, não creio que a sociedade brasileira, que coloca a questão na forma de valores metafísicos e - em consequencia disso - rotula a favorabilidade à descriminalização como "abortismo", esteja preparada para discutir a questão neste nível de complexidade.

Isto porque a discussão assim posta requer o reconhecimento dos pressupostos que alimentam os argumentos. São eles: a idéia equivocada sobre o sofrimento da mulher livre para abortar, e o papel da sociedade no reforço das suas normatizações ético-morais contra a prática do aborto (mesmo após a descriminalização).

Resolvidos esses dois pontos de conflito, a questão se resolveria. Mas, como disse, sou cético em relação a isso.

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