sexta-feira, 1 de outubro de 2010

TRADIÇÃO AUTORITÁRIA

As sociedades reproduzem em suas vivências os valores cultivados como normas ao longo da sua história. Se toda a organização social bebe de alguma forma no seu próprio passado, tanto o distante quanto o recente, como é possível a organização de sociedades mais justas ou éticas no presente?

Tomemos como exemplo a "discussão" sobre o aborto. Do ponto de vista democrático é correto que uma mulher possa ter o direito de interromper a gravidez se assim o decidir. Trata-se de um raciocínio óbvio: se uma mulher é um ser racional e o aborto é uma prática agressiva contra o corpo e a mente, causando sofrimento físico e emocional, a decisão que opta pelo aborto, uma decisão consequentemente sofrida, tensionada, deve obter do Estado o aparato público necessário à sua consumação.

A falsa idéia de que a concessão desse direito fará com que as mulheres recorram intermitentemente ao SUS, já que a regulamentação do aborto impedirá a criminalização de médicos e pacientes, precisa de um único ingrediente da tradição autoritária que sociedades provincianas manejam muito bem: a desconfiança em relação ao sexo feminino.

Ou seja, é necessário ter um conceito consideravelmente baixo da mulher para considerá-la capaz de recorrer intermitentemente ao SUS para interromper gestações. Como se fosse algo fácil, simples, arbitrário, que se decide numa jogada de mão.

É parte da tradição autoritária brasileira - que as igrejas cristãs endossam e apoiam - olhar para a mulher e ignorar todo o sofrimento moral, o impasse psicológico, os riscos de hemorragias e outras consequencias orgânicas, além do dedo em riste da família, líderes religiosos e, quase sempre, da própria mulher.

O pressuposto dessa tradição é considerar a mulher incapaz de decidir por si mesma, sopesando seus sofrimentos e prejuízos, e concluir que a descriminalização do aborto causará uma corrida aos hospitais. O raciocínio subjacente a tudo isso é que, em relação a questões de gênero, é necessário apelar para o poder da tradição, da autoridade. Deixado a si mesmo, conclui tal pensamento, o gênero feminino tende a fazer cedo ou tarde algum tipo de barbaridade.

Trata-se do mesmo argumento utilizado ainda hoje para justificar uma suposta diferenciação entre brancos e negros, sendo aqueles civilizados e educados, e estes, idiotas e ineptos. No que realmente importa, no cerne, o argumento antifeminino e racista são a mesma coisa: a hipócrita tradição conservadora que ainda determina o conjunto de mitologias que, como se não bastasse, se crêem democráticas...

É igualmente mitológica, religiosa, a idéia de que o embrião humano ganha "alma" no momento da concepção (poucos instantes após o ato sexual, ou seja, na união entre óvulo e espermatozóide). De uma doutrina puramente etérea, metafísica, imaginativa, ela ganhou status empírico e não foi graças à discussão teórica, científica ou mesmo filosófica. Foi, isso sim, ao custo de genocídios e extermínios de povos inteiros, inclusive no Brasil. Sistemas de idéias ou de organizações sociais diferentes sempre representaram ameaças à hegemonia da tradição autoritária.

Vale lembrar que "alma" é uma criação religiosa, e, portanto, existente apenas no campo da fé (algo subjetivo, pessoal).

Diferente de todos os animais, a transmissão das características do nosso gênero aos novos indivíduos não se dá apenas biologicamente. Ela se dá também mediante sistemas de aprendizado ao longo da vida, "bebendo" na vida social preexistente em redor do novo indivíduo. É por isso que, ainda que sejam indivíduos do mesmo Homo sapiens, pessoas que nascem em sociedades diferentes falam idiomas diferentes, usam roupas diferentes, têm tradições religiosas diferentes etc.

Por esta razão o termo "humano" só é inteiramente aplicável - como o sabe a Psicanálise contemporânea - ao indivíduo na medida da sua inserção simbólica na gigantesca herança simbólica adquirida por nossa espécie ao longo das eras. Linguagem, cultura, mitos, raciocínio lógico etc, são o legado comum de todos os homens, porque é também o legado da Humanidade.

E se não somos seres humanos melhores nesse processo, isto deve-se ao fato óbvio de que o peso imenso das muitas tradições autoritárias é muito maior que o legado cultural que todos podemos, por direito de nascimento - por pertencer à espécie - acessar.

A profusão de mitos religiosos autoritários, destinados a colocar o sexo feminino em seu "devido lugar" (atrás do fogão) e a desconfiança em relação ao gênero feminino oriunda exatamente dessa tradição autoritária, sobrepõem-se à vida democrática sob um único pretexto: obter poder sobre os indivíduos.

A sociedade inteira organiza-se por meio de sistemas de controle, do qual o aborto é só um deles. O que é muito curioso, por sinal. Quando, em fins do Séc. XVII, a ascensão burguesa derrotou as monarquias absolutistas européias para se tornar mais tarde a formação societal dominante até os nossos dias, a promessa era justamente que a liberdade individual seria a prioridade dos sistemas que se pretendiam democráticos.

Não é.

Em nossos dias, como em todas as épocas, forças poderosas conjugam-se com a ignorância política para produzir arranjos bizarros de poder, em nome da democracia! Vozes discordantes, progressistas, são chamadas a se calar diante de práticas covardes de intimidação e criminalização.

Se quisermos ter uma sociedade justa precisamos primeiro deixar de nos guiar por valores normativos, autoritários, profundamente antidemocráticos. Criar uma ordem humana, consensual e democrática, requer construção societal fundada no que for melhor para as pessoas, não em concepções metafísicas calcadas na ignorância e no preconceito.

Somente assim será possível iniciar a reflexão sobre os limites da democracia representativa: conhecendo os arranjos de poder que lhes são subjacentes. Caso contrário, toda luta será inglória.

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