quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

CONTRA A BARBÁRIE

Leitor Emílio Reis, nos comentários, mandou os torpedos a seguir:

Josafá, vc colocou um enigma, mas não deu a resposta. Como vc acha que isso pd ser resolvido? As pessoas precisam de coisas seja no capitalismo seja no socialismo, e a população mundial vai aumentar tanto num qto no outro. Não sei mto bem, mas parece que houve tragédias ambientais também na antiga URSS. Como fica isso? Ou vc acha que todos devem apertar o cinto e consumir menos? Isso jã não pd ser feito já no capitalismo com o desenvolvimento sustentável? Desculpe se estou sendo chato, é que não entendi a mensagem muito bem. Abraços calorosos!


Emílio, a solução para uma economia baseada no acúmulo, que necessita produzir mais para gerar lucro, é uma economia baseada na satisfação das pessoas. Ou no que elas precisam pra viver.

Já que todas as pessoas precisam de coisas, como você diz, seria bem mais simples que todas se reunissem de alguma forma, combinassem entre si o que deveria ser produzido e então passarem a produzir. Roupas, sapatos, aviões, enlatados, cerveja (hmmmmm...), livros, até mesmo serviços poderiam ser produzidos desta forma. Para distribuir, bastaria que cada um recebesse segundo a sua necessidade, de acordo com o trabalho individual dispendido nos processos de fabricação.

Numa economia assim o impacto sobre a natureza seria infinitamente menor. Hoje é preciso produzir muito mais, porque cada mercadoria tem que ser vendida com lucro. Não é por acaso que o sofrimento do planeta com a presença humana tornou-se mais evidente com o capitalismo. Veja as emissões de CO2. Os conquistadores espanhóis, ingleses, franceses etc ateavam fogo em plantações, pastos ou aldeias inimigas. Os capitalistas modernos deram um jeito de derrubar e pôr fogo nas florestas, erguer chaminés imensas na maior parte das cidades e transformar o que chamamos de "trânsito" em algum tipo de antessala do Reino de Hades...

Claro, a população mundial cresce tanto no capitalismo quanto no socialismo. O que muda é a forma de relacionamento entre homens e natureza. A nossa forma de intervenção hoje é insustentável porque a busca pelo lucro exige, impõe que se avance sobre os estoques de matérias-primas em escala industrial. Para que um pequeno grupo acumule capital e fique rico é preciso primeiro produzir capital. E capital só se produz com trabalho, que por sua vez requer o avanço sobre a natureza. E como o trabalho humano sobre a natureza só se dá transformando-a, a questão é então de ritmo.

O chamado "desenvolvimento sustentável" é uma tentativa de reduzir esse ritmo, em várias frentes: legislações de proteção florestal, consumo consciente ou responsável, reciclagem do lixo, da água, uso de matrizes energéticas limpas e por aí vai. Tudo isso é muito inteligente, tenta-se frear aquele ímpeto destruidor por meio de barreiras jurídicas e práticas novas de cidadania. Mas a grande questão é: funciona no capitalismo? Eu estou convencido que não, e mais, há um grande risco subjacente a essa prática ecocapitalista. Ela pode gerar uma desculpa para um tipo novo de fascismo, um ecofascismo.

As pessoas não podem ser tolhidas de suas escolhas. No socialismo as pessoas escolhem porque participam dos processos, desde as deliberações políticas até a vida econômica propriamente dita. Continuam sendo indivíduos com necessidades, aspirações, interesses ou desejos diferentes em relação aos outros. O que é ótimo, porque as pessoas não são iguais entre si. São essas diferenças que vão permitir que as pessoas melhorem a si mesmas e exercitem um princípio básico do cosmopolitismo: a convivência com a diversidade.

Nesse ecocapitalismo, a necessidade de um Estado extremamente forte e atuante para regulamentar processos econômicos e sociais tende a criar um monstro porque continuará estratificando a sociedade de outra forma. E sem eliminar o capitalismo, ou seja, sem eliminar a exploração da natureza para o lucro, que, como citei no começo, é o verdadeiro problema. Temos então uma situação peculiar que é a seguinte: mantém-se o princípio do lucro privado que exige mais exploração, e por outro lado se fortalece o Estado. Um Estado que terá que ser - necessariamente será - regulatório, restritivo, disciplinador. O panóptico de Foucault elevado à institucionalidade.

Não quero ser demasiadamente simplista e dizer que "a marca de qualquer fascismo sempre foi Estado forte e capitalismo". Ainda que isto seja uma verdade, minha preocupação é com o que já ocorre hoje em nome desse monstrengo ainda embrionário. No Acre, pequenos produtores rurais são punidos pelo Ibama porque usam fogo para fazer seus roçados. Ao mesmo tempo, em nome do desenvolvimento, empreendimentos duvidosos como a prospecção de petróleo em áreas indígenas e a implantação de uma usina de álcool com subsídio estatal é louvada como se fossem a salvação para o "atraso econômico".

O Estado nunca foi um "agente neutro" nas lutas de classes. Ele sempre foi formado e manipulado para garantir os interesses dominantes. Em qualquer época histórica. Tentar pôr freio no capitalismo por meio de regulamentações estatais e ao mesmo tempo manter o princípio do lucro sobre a natureza é mais que uma contradição, é a porta aberta para a tirania disfarçada de vigilância dos agentes públicos. Uma tirania, que fique claro, contra quem não tem a necessária grana para pagar a propina do fiscal ambiental, do juiz, do promotor. Contra quem não é amigo do poder.

Poderíamos até fazer um exercício de imaginação, abstraindo todo o amor ao mandonismo, patrionialismo e coronelismo dos nossos políticos e imaginar que algo assim "desse certo". Nesse caso, a incontornável oposição entre capital e trabalho se tensionaria a tal ponto que os verdadeiros donos do poder, aboletados na própria máquina pública, tratariam de sequestrar a política - como ocorreu em abril de 64 - para garantir "o direito à propriedade, ao investimento, contra o Estado opressor". É digno de nota que esse discurso já está presente, também de forma embrionária, na sociedade atual. Em caso de dúvida basta ler qualquer informativo de órgãos empresariais, do Oiapoque ao Chuí.


Como se faz notar, a fusão entre desenvolvimento e sustentabilidade, portanto, não passa de semântica. Um truque teórico.

Outro truque: considerar que os crimes ambientais de fato ocorridos na URSS seriam de alguma forma imputáveis ao modo socialista de produção, no sentido que acabei de expor. A economia planificada socialista, como tudo o que diz respeito ao Homo sapiens, não está isenta de cometer erros, acidentes ou de avançar mesmo sobre a natureza. O ritmo e a intensidade com que tais coisas ocorrem é que são incomensuravelmente lentos se comparados aos do capitalismo. Isso dá tempo para os ecossistemas se recomporem - tempo de recomposição das espécies é uma das chaves, aliás, de uma das apostas mais enganosas do desenvolvimento sustentável: o manejo florestal. Mas esta é uma outra história...

É isso o que tinha a dizer, meu caro. Em caso de dúvida, clique nos links disponibilizados ao longo do texto. Ou envie novas questões, terei prazer em respondê-las.

Atenciosamente.

PS - O título da postagem diz respeito a um livro da revolucionária alemã Rosa Luxemburgo, que tem por título "Socialismo ou barbárie?". Recentemente outro socialista, o húngaro István Meszáros, escreveu que a única resposta que se pode dar hoje a tal pergunta seria: "Barbárie, se tivermos sorte"...

Um comentário:

Gonzo Sade disse...

Preciso urgentemente fundar o meu bando Baaden-Meinhof na região.