sábado, 2 de julho de 2011

IN HOC SIGNO VINCES

Recebi do meu amigo cientista político - e cristão - Israel Souza uma brilhante contestação aos principais argumentos de duas postagens recentes: "Por que o cristianismo não produz paz social" e "Ainda sobre cristianismo e paz social", publicadas respectivamente nos dias 24 e 25 de Junho passado.

Apesar de ser um texto razoavelmente longo para os padrões do blog, vou publicá-lo na íntegra em vez de passar um atalho do Google Docs, como de costume. Faço isso porque sei que muitos leitores têm uma perspectiva similar à do Israel, da qual evidentemente não compartilho, mas tenho alguns razoáveis pontos em comum. Assim, guiado por costumeira curiosidade, farei em seguida comentários e adendos para estimular o debate. Como se diz na esgrima: - Israel, en garde!


Para um debate sobre o cristianismo, por Israel Souza

O cristianismo não “é uma religião predominante na nossa sociedade há pelo menos 2.000 anos”. Não se deve esquecer que, no princípio, ele era uma entre muitas outras existentes no território romano; uma “religião marginal”, considerada uma “heresia” em relação ao judaísmo hegemônico dos primeiros anos de nossa era. Era uma religião marginal e de marginais: pescadores, doentes, ladrões públicos (caso dos publicanos, como Mateus, a quem se atribui a autoria de um dos evangelhos), militantes políticos, putas etc.

Somente quando se torna a religião oficial do Império Romano é que ele foge a esse status. Uma vez que as outras religiões tiveram seus cultos proibidos no solo imperial, ele pôde crescer, se tornar preponderante e, em consequência, deixar de ser uma religião “dos de baixo” para ser uma religião “dos de cima”.

É verdade que as outras religiões tiveram que adaptar “suas narrativas”. Mas não é menos verdade que também o cristianismo o fez. Não poucos teólogos e historiadores da religião são concordes quanto ao fato de que muito do que se diz cristão veio de outras religiões e culturas. Em primeiro lugar, do judaísmo. Mas também dos gregos - e quão fundamental foi a ontologia grega, quer de corte platônico ou aristotélico - para as bases da teologia cristã.

Realçando a relação do cristianismo com outras religiões e culturas, Santo Agostinho já dizia em seu tempo: “A substância daquilo que hoje a gente chama de cristianismo já estava presente nos antigos nem faltou desde os inícios ao gênero humano até que Cristo viesse em carne. Desde então, a verdadeira religião que já existia começou a chamar-se religião cristã”.

Isso abre margem para que coloquemos aqui a “incapacidade do cristianismo de produzir paz social”. Como se pode deduzir do que acima foi exposto, o cristianismo influencia, mas também é influenciado pelo meio social em que ele se insere. É lícito dizer que ele - a exemplo de seu fundador - é um “verbo” que se encarna e que, portanto não paira no ar, acima e fora das relações sociais. Mesmo que em seus mais firmes propósitos, seus seguidores busquem “as coisas do alto” (Cl 3, 1), as mais espirituais, as religiões estão amarradas a um “corpo de morte” (Rm 7, 24).

Por este último - que aqui significa sua dimensão terrena, inapelavelmente social -, elas estão implicadas nas relações político-sociais. Com o cristianismo não é diferente. E, em razão disso, ele pode manifestar tanto uma postura libertária quanto uma conservadora. Para dizer com as palavras da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER):

É sobejamente conhecido que nenhuma religião opera no vazio. Toda religião existe e desenvolve-se num contexto humano específico, em estreita inter-relação com seu espaço geográfico, seu momento histórico e o meio ambiente social concreto onde está situada. Isso significa que toda religião é tributária do seu contexto e exerce sobre ele algum tipo de influência. Nenhuma religião é um compartimento estanque, mas parte integrante e ativa da vida coletiva. É no interior das estruturas sociais que qualquer religião tem de operar, e de fato opera. Em conseqüência nenhuma religião pode eximir-se de sua responsabilidade social. Seu potencial transformador ou conservador em relação ao status quo da sociedade é um fato (SOTER, Religião e transformação social no Brasil hoje, p. 5).


Somente ignorando a relação dialética existente entre religião e sociedade é possível atribuir-lhe incapacidade de gerar paz social. É preciso reconhecer que, ainda que forte, ela é apenas uma peça do “todo social”. Sozinha, ela jamais conseguiria gerar algo que não depende somente dela. Dito de outro modo, a afirmação de que o cristianismo é “incapaz de gerar paz social” é correta porque supõe o impossível. É algo equivalente a dizer que o secularismo ou o ateísmo é incapaz de “gerar a paz social”.

Para explicitar ainda mais a complexidade das coisas, é preciso dizer que, além da influência social a que está sujeito o cristianismo, ela é uma tradição plural, onde se reúnem - de forma tensa - referências diversas e contraditórias. Umas falam de paz e fraternidade universal. Outras, porém, falam de divisões, guerras e sectarismo. Umas afirmam a fé como seu fundamento - como o fez Pr. Marcelino aqui nesse blog, fazendo referência à graça no “Evangelho”, mas citando Efésios e ignorando Tiago (Tg 2, 14; 17-19; 24; 26), João (1 Jo 3, 18) e mesmo Paulo. Este diz em Coríntios (1 Cor 13, 13): “Agora, portanto, permanecem fé, esperança e caridade (ou amor, como em geral é traduzido. A presente tradução é da Bíblia de Jerusalém, que é própria para o estudo e, segundo muitos, tem a tradução mais próxima do original), essas três coisas. A maior delas é a caridade”.

Outros afirmam a importância das ações (“boas obras”) em favor dos pequeninos e da luta por justiça - quanto a isso, vale lembrar a Teologia da Libertação cuja força foi indispensável para organizar e sustentar a luta contra os governos militares na América Latina. Nesta perspectiva em particular, o amor que se dispensa ao “próximo” não faz dele uma espécie de escada, em que o cristão se apóia a fim de alcançar a salvação. Muito ao contrário, aí o amor leva o cristão a dar a própria vida em favor dos outros. Ele abre mão de si mesmo, como fez o “carpinteiro de Nazaré” (Mc 5, 3), não em favor “dos primeiros”, mas em favor “dos últimos”.

Importa não esquecer que Jesus mesmo disse que não veio para “os justos”, mas para os “pecadores”, pois são “os doentes que precisam de médico”.

Outros fazem da riqueza/prosperidade a marca da relação do fiel com Deus (vide Edir Macedo, Silas Malafaia e tantos outros mercadores da fé). Outros, como o Santo de Assis, levam a sério o valor da humildade e da pobreza. Outros não radicalizam tanto, mas têm sempre presentes ensinamentos como esses:

Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e o caruncho os corroem e onde os ladrões arrombam e roubam, mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde nem a traça, nem o caruncho corroem e onde os ladrões não arrombam nem roubam; pois onde está o teu tesouro aí estará teu coração (Mt 6, 19-21);

Ninguém pode servir a dois senhores. Com efeito, ou odiará a um e amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o segundo. Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro (Mt 6, 4);

É mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino do céu (Mt 19, 24).

Diante de um ataque tal frontal aos valores do capitalismo, é lícito dizer que o cristianismo está na “base histórica da moralidade mundana ocidental” e do capitalismo? Não. Apenas alguns de seus valores ou que são apresentados como sendo seus valores.

Em síntese, pode-se dizer que o cristianismo não é uma essência, imune à história e às relações sociais. Ao contrário, ele é uma herança, em contínua disputa e construção. Como tradição onde se cristalizaram outras tantas tradições, ele permite diversas interpretações. Seus intérpretes e adeptos, o apreendem sempre a partir de seus valores, interesses e consciência de classe. Revolucionário, Marx, mesmo concebendo a religião a partir da ótica dialética (como em Sobre a questão Judaica), ressaltava seu caráter conservador. Aristocrata, Nietzsche (Gaia a ciência, Crepúsculo dos ídolos ou como filosofar com o martelo, Genealogia da moral, Assim falou Zaratustra etc.) o via como um perigo que, a partir dos postulados de igualdade entre todos e de sua “moral de rebanho”, inspirava as lutas sociais que marcaram a Europa durante os séculos XVIII e XIX.

Um mundo cristicado (para fazer referência a uma expressão do filósofo e teólogo Teilhard de Chardin) ou não-cristificado, por si só, não é garantia de mais paz e justiça social. Sociologicamente falando, a religião é apenas uma expressão-interpretação do mundo-relações sociais. Com consequências práticas, é verdade. Mas é só uma forma de expressão-interpretação. E, como diz Marx nas teses sobre Feuerbach (outro que muito nos tem a dizer sobre religião), mais que expressar-interpretar, o que vale é mudar o mundo.

Para finalizar, cito Leonardo Boff, numa passagem em que ecoam claramente as palavras de Marx e Engels em Ideologia alemã:

A religião dominante num grupo é a religião do grupo dominante. A forma dominante de representação de Deus é influenciada pela forma como a cultura dominante representa Deus. E ela representa Deus no quadro de seus interesses fundamentais. Assim, na sociedade capitalista, (...) normalmente a representação de Deus acentua o fato de Deus ser um só, de ser Senhor de tudo, de ser Todo-Poderoso e fonte de todo o poder. Daí se deriva, normalmente, que os portadores de poder na terra são seus representantes naturais (BOFF: A Santíssima Trindade é a melhor comunidade, p. 13-14).

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Meus comentários: Partirei de questões adjacentes para o que considero a problematização central.

De fato, só no ano 380 o Cristianismo só foi transformado em religião oficial do Império Romano, por meio do Édito de Constantinopla, do imperador Teodósio I. No entanto, em 312 o imperador Constantino conseguiu esmagar a tetrarquia romana depois de um agitado sonho com a cruz cristã na qual estavam escritos os seguintes antepassados da Teologia da Prosperidade: "Com este signo vencerás" (ou, no latim, In hoc signo vinces, título da postagem de hoje). Como se sabe, na manhã seguinte o imperador determinou que seu exército grafasse a cruz em seus escudos, e, sob tão poderosa motivação, trucidou os demais imperadores e reunificou Roma.

Diante de tais fatos, fico em dúvida sobre se o Cristianismo é ou não a religião predominante nas sociedades ocidentais há cerca de dois milênios, mesmo se não levarmos em conta os conhecidos erros de datação do nascimento de Jesus. Pelo sim, pelo não, cumpramos um dever de consciência: um milênio e meio deve bastar...

A questão do Cristianismo estar ou não estar na base da moral das sociedades ocidentais pode ser resolvida desvendando-se o valor do termo "moral", palavra latina que significa "costumes". Segundo Marilena Chauí, "o plural latino, 'mores', designa os hábitos de cultura ou de comportamento instituídos por uma sociedade em condições históricas determinadas."

Ou seja, o Cristianismo não é o elemento que definiu, originou, produziu a moral ocidental. Não há uma relação de causalidade - esta relação, como veremos adiante, é o próprio cerne da argumentação invocada pelo Israel, ou seja, uma crítica a algo que não existe - entre os dois fenômenos, apesar de socialmente eles se manifestarem juntos.

O que tentei explicar é o que qualquer estudo antropológico pode atestar: a cultura (o conjunto amplo de "costumes") ocidental foi amplamente favorecida pelas doutrinas cardeais do Cristianismo: rituais de nascimento, casamento e morte; a filantropia como dever para com o outro, produzindo "hierarquias morais"; o funestíssimo conceito de heteronomia nas práticas individuais, o que castra o animal político e infantiliza a própria política; e principalmente o que me parece central e mais perigoso, ainda que profundamente enraizado na mentalidade política das sociedades ocidentais (desde que não-indígenas): a substituição da realidade por um dever-ser.

O que é tão perigoso?

Antes de entrar na questão propriamente dita, quero avisar aos virtuais leitores que a partir de agora entramos no cerne da minha argumentação. O que está em disputa com o Israel é o seguinte:

- o Cristianismo não produz paz social porque tem um valor intrinsecamente antipolítico, independentemente das relações sociais (a minha tese).

ou

- dizer que o Cristianismo não produz paz social é uma petitio principii, uma vez que não se sabe de qual Cristianismo estamos falando, cometendo assim o erro sociológico de abstrair as relações sociais por meio das quais uma religião é produzida, e somente assim é produzida (a tese do Israel).

Parece óbvio, pelo menos pra mim, que qualquer argumento sobre a exploração religiosa da miséria política terá que considerar, necessariamente, a exploração política da miséria religiosa. Em português: não é possível considerar a teologização (ou "cristificação", no texto do Israel) da política abstraindo os interesses concretos responsáveis pela ofensiva. No meu caso esses agentes estão claros nos dois artigos: a idéia de "ganhar o Brasil para o Senhor Jesus" é a tentativa clara de circunscrever o espaço público, que necessariamente deve ser dedicado à deliberação e crítica das mais variadas formas de intervenção autônoma, às doutrinas, dogmas e cânones de uma parcela de uma religião. Seus representantes vão às ruas e organizam-se cada vez mais nas instituições legislativas e demais espaços institucionais, defendendo exatamente isso.

Se existe esta interligação orgânica entre fenômeno e crítica, o problema encontrado pelo Israel deveria revelar-se como um pseudo-problema: a questão das "relações sociais" da qual o Cristianismo deveria emergir como produto histórico para somente então dar-se a todas as formas de crítica está claramente circunscrita nos próprios elementos dessa crítica. Se não estivesse, como diz o seringueiro acreano, não estaria...

A menos, é claro, que alguém fizesse uma crítica ao Cristianismo abstraindo precisamente a forma institucional da cristandade com a qual se deparasse e a partir da qual passasse a refletir. O que será, suponho, uma tarefa importante para historiadores do futuro - eu espero.


Pode não parecer, mas a questão final, do elemento intrínseco ao Cristianismo e pernicioso à democracia, relaciona-se a essa última questão - o que, paradoxalmente, levará o Israel a ter razão no seu questionamento.

Recordemos: minha preocupação central era, e ainda é, exatamente, que a pretexto da "vontade de Deus para o mundo" pretende-se reinstaurar na ordem pública a mesma ambição do Santo Ofício ou do III Reich: inaugurar na esfera pública a legitimidade do poder de mando verticalizado, hierarquizado, predefinido. Eliminando, portanto, o caráter pluralista, contraditório, o caráter de construção mesmo, da política tal como a entendiam os gregos (e com todas as ressalvas que as esquerdas sempre fizeram a tal concepção, como, por exemplo, a exclusão das mulheres e escravos nos debates da polis).


A grande ambição de governos totalitários sempre foi a uniformização da política, o disciplinamento do espaço público segundo uma vontade anterior às vontades dos cidadãos e que também as domina ou manipula. Esse disciplinamento opera pela coerção no caso do totalitarismo clássico, e, mais recentemente, pelo que Jean-François Brient chama de "servidão moderna", predominante na atual fase do capitalismo - a favorabilidade desta servidão aos mecanismos totalitários do capitalismo é também um dos argumentos centrais de um clássico da esquerda: Guy Debord, em seu "Sociedade do Espetáculo".

Agora, vejamos:

A grande ambição dos grupos que pretendem ganhar o Brasil para Jesus é submeter a política exatamente a um discurso religioso, a imperativos de ordem moral reunidos na rubrica "plano de Deus para o mundo". Como estratégia para cumprir esses imperativos, tais grupos ocupam os espaços convencionais de uma política institucional desgastada pelo aliancismo entre a direita tradicional e uma esquerda cooperacionista.

Relembremos a definição sintética do Israel:

Em síntese, pode-se dizer que o cristianismo não é uma essência, imune à história e às relações sociais. Ao contrário, ele é uma herança, em contínua disputa e construção. Como tradição onde se cristalizaram outras tantas tradições, ele permite diversas interpretações. Seus intérpretes e adeptos, o apreendem sempre a partir de seus valores, interesses e consciência de classe.

É possível argumentar longamente sobre o enorme poder de legitimidade social derivado de tamanha maleabilidade diante de interesses contraditórios. Mas esse caminho, apesar de possibilitar profundas reflexões sobre a questão da ideologia, dos mecanismos de conciliação de classes e os problemas do utopismo na trajetória da esquerda brasileira não será percorrido por razões de espaço. Faço uma única observação, exatamente ao utopismo, como trampolim para o próximo parágrafo: o transformismo da luta revolucionária em "utopismo" é uma inversão pouco percebida, tematizada e mesmo refletida, mas é, provavelmente, o elemento mais poderoso de corrosão da luta contra-hegemônica de todos os tempos.

O utopismo converteu a luta contra algo numa luta por algo, jogando-a no olho do furacão nietzscheano - e empurrando quadros importantes da própria esquerda para a onda pós-moderna, diante da contradição teórica daí resultante. Eis aqui o problema do dever-ser, anteriormente citado.

O utopismo deslocou o ímpeto transformador inerente à classe trabalhadora, uma vez que fundado em interesses materialmente palpáveis (em necessidades materiais), numa "busca por um mundo mais justo", "pelos pobres" etc. Na ressemantização conceitual, operada pela Teologia da Libertação, a organização "dos excluídos" (da classe trabalhadora) contra "contra a opressão" buscava "o reino de Deus entre nós".


Qual o pressuposto dessa ressemantização?

O pressuposto é somente um: a ressistematização, em termos religiosos, de uma relação de exploração (e não de opressão) que se dá nas trocas necessárias à satisfação das necessidades naturais dos homens. Não importava que não houvesse relação de opressão, isto é, de coerção nessas trocas. Lidas de forma religiosa, ganharam um novo arcabouço. Agora, a Vontade de Deus (aquela, do Plano para o Mundo) era que o seu Reino fosse construído aqui mesmo entre nós.

Autonomia dos homens? O caráter construído da política? A inauguração de uma forma caprichosa de heteronomia a título de libertação moral? Ninguém pensou a respeito. Absolutamente ninguém - pelo menos até onde sei, apesar de ser consenso na esquerda a idéia do enorme perigo que é a uniformização do espaço público em nome de uma autoridade que o precede, em outras situações.


O resultado desse exercício curioso de entrismo "amigo" foi a esquerda brasileira contemporânea, isto é, uma esquerda com um extraordinário ímpeto moralizante (o que é um absurdo se considerarmos a função original da esquerda e a origem da palavra "moral"). O leitor mais desavisado sabe a altíssima imagem que os partidos de esquerda costumam ter de si mesmos. Alguns, mais informados, podem até saber que grande parte da cantilena programática do PT, PCdoB, PPS e outros baseia-se não nas relações de exploração do capitalismo e consequentemente na necessidade de superá-lo, e sim no quão puros, corretos e honestos esses partidos podem ser, o que os qualifica para gerir a máquina pública e desenvolver o próprio capitalismo.


Humano, demasiado humano.

Não serei desonesto: tanto quanto acredito na função social dessa esquerda tal como subsiste hoje, acredito que as formas religiosas, quaisquer que sejam, podem colaborar e muito na luta da classe trabalhadora contra a exploração do homem pelo homem. O envolvimento direto e indireto de religiosos nas lutas dos trabalhadores, no Brasil e em outros países da América Latina, exemplifica tal possibilidade mais claramente que qualquer abstração teórica. No entanto, é bom frisar novamente: para que a "vontade de Deus" seja compatível com a luta política de matriz libertária, é necessário que elementos de outra instância, elementos não-religiosos (políticos) sejam importados e interpretados por meio dos mitos da religião.

Há, claro, diversas implicações nesta operação. O risco de calcificação, de enrijecimento mesmo, das categorias teóricas necessárias à compreensão do capitalismo só não é menor que a substituição das mesmas por um dever moralizante na política. O tipo de esquerda daí derivada, além de não dar conta da complexidade da exploração do homem pelo homem em nossa época, tende necessariamente ao reformismo e ao aliancismo como estratégias de sobrevivência. E tende até mesmo a jogar contra os interesses históricos da classe trabalhadora, uma vez que esta é uma situação na qual o poder é ao mesmo tempo meio e fim.

É evidente também que essa reflexão encontra o tal "elemento intrinsecamente antipolítico" do Cristianismo. Mas até nisso pode-se fazer ressalvas.

Há alguns meses deparei-me, por exemplo, com o artigo "Deus nos livre de um Brasil evangélico", escrito pelo pastor Ricardo Gondim. Da perspectiva evangélica, ele lança mão exatamente dos argumentos que venho apresentando para o enorme perigo que seria converter a democracia formal brasileira numa teocracia cristã - bandeira, repito, levantada e defendida por milhões de pessoas no Brasil hoje.


Esses raios de lucidez animam, porque reafirmam a idéia - comezinha - de que a democracia religiosa pode ser defendida por religiosos com o mesmo frenesi da ampliação de direitos civis para minorias. Sem que nem um nem outro vire motivo para espasmos esvoaçantes em praças públicas. Há bons textos de intelectuais cristãos, como Frei Betto e Leonardo Boff, que transmitem idéias parecidas. Uma das agências de notícias listadas no blog, a Adital, traz brilhantes reflexões de teólogos e outros religiosos "engajados" sobre as mais variadas formas de exploração disponíveis no mercado atualmente.

Obviamente essa perspectiva, como afirmei antes, aproxima o argumento do Israel e o meu, apesar da aparente oposição inicial. Esta, no entanto, é uma questão para outra postagem...

Um comentário:

WALQUER CARNEIRO disse...

Um ponto de vista muito lúcido real e atual. Tema sobre o qual eu vinha refletindo desde as eleições gerais de 2010 quando a comunidade evangélica se levantou a clamar pelo governo dos justos, e que este texto me elucidou.
Eu venho percebendo que realmente lideranças pentecostais vêm se infiltrando no meio político com a justificativa de Ganhar o Brasil Para Jesus, porém o que se percebe é que a real intenção (?) está escondida por detrás de discursos evengelisticos que põe a fé no Criador ao rés do chão.