segunda-feira, 11 de julho de 2011

TIRANIA DO COLETIVO, DITADURA DA MAIORIA

Mafalda, personagem do cartunista Quino
Muitas pessoas não se metem em movimentos sociais por temerem aquele efeito notável e nefasto de algumas dessas organizações: a tirania do coletivo.

Mesmo vergadas sob o enorme peso de problemas que não podem ser resolvidos individualmente como achatamentos salariais, falta de serviços públicos em seus bairros, abusos cometidos por instituições e ou culturas subservientes aos "de cima", elas preferem preservar sua privacidade a manifestar publicamente.

Militantes de causas civis conhecem bem a tirania coletivista. No calor das posições inevitavelmente divergentes na busca de algum objetivo comum, os argumentos normalmente são classificados em escalas ou graus de importância. A tirania começa quando em vez de avaliar as idéias em relação aos objetivos, avalia-se os sujeitos em relação ao grupo. Diante disso, pessoas passam a ser tratadas como ferramentas, úteis ou inúteis, segundo o julgamento da maioria.


O tratamento dispensado por cada grupo às ferramentas "inúteis" varia conforme a respectiva predisposição histórica à violência interpessoal. É possível até visualizar com alguma clareza as heranças de ordem cultural, econômica, psicológica etc, que se apresentam nas formas e meios de punição adotados - e nas respostas das vítimas.

A tirania dos coletivos tem - obviamente - escassa bibliografia nos partidos e movimentos sociais, o que é uma das chaves para o sucesso do argumento que lhe aponta outro fenômeno como consequencia direta: a ditadura da maioria. Cunhada por Aléxis de Tocqueville (1805-1859), a expressão se aplica às situações em que as idéias, comportamentos etc., tidos predominantemente como “normais” e “naturais”, se impõem de tal forma que impedem a manifestação e realização da individualidade e idéias minoritárias.

Um pouco diferente do que ocorre na tirania coletivista, na qual tanto idéias tiranizadas quanto majoritárias compartilham a característica de perseguir interesses comuns, na ditadura da maioria a preocupação é que um ente coletivo qualquer (igrejas, partidos, sindicatos etc), ao tomar as suas idéias como expressão da verdade absoluta de sua época, exclua e/ou persiga os que pensem e atuem diferentemente, dificultando o desenvolvimento das artes, da filosofia e mesmo da ciência.

Nesse sentido pode-se dizer que a luta contra a ditadura da maioria é a sofisticação do esforço para evitar ou impedir tiranias coletivistas. O que, claro, é um paradoxo: se a democracia é um regime que tende à uniformização precisamente ao perseguir a igualdade formal entre os homens, em algum momento a ampliação dessa igualdade pode ser denunciada como um atentado à democracia. Basta, para tanto, que interesses contrários à ampliação se manifestem como feridos ou violados.

Essa manobra só é possível graças a um deslocamento curioso: da demokratia (demo = povo, kratia = regime), isto é, regime ou governo do povo, para um governo de defesa do povo. Há uma transição clara. De um ímpeto aquisitivo, transformador, para um ímpeto mantenedor (conservador). De um regime de construção social (com horizonte aberto porque supõe a ampliação de direitos e inclusão social) para um sistema cujo fim não é mais a deliberação e participação, mas a garantia do que está consolidado.

Dessa transição nasce o paradoxo da democracia sem democracia, ou seja, de um regime político que simboliza a democracia, leva o seu nome, mas que é incapaz, por sua natureza, de permitir a vontade do povo porque suspeita dela. Por isso a secundariza, e, ao fazê-lo, dá vida ao seu próprio pesadelo: o sequestro do direito de autonomia por uma ordem que age em defesa de algo.

Sem entrar no mérito doutrinário dos senões do liberalismo clássico à democracia - até porque todos são facilmente localizáveis entre os "pais fundadores" do liberalismo, como John Locke, Benjamin Constant, Voltaire, Montesquieu etc. - é fácil perceber que a tirania coletivista, a ditadura da maioria e o seu combate tal como se realiza nos Estados modernos são processos elementares de uma só orientação: o conservadorismo.

É o conservadorismo que exige a confusão entre pessoas e idéias, rejeitando ambas para desabilitar potenciais inimigos em disputas saudáveis (entra aqui as várias formas de sabotagem operada pelos aproveitadores e sacripantas em geral que usam posições de mando social para auferir vantagens e lucros individuais).

É o conservadorismo que, quando lhe é útil, vende a democracia como regime contrário às liberdades individuais, quando na verdade a ampliação dessas liberdades só pode se dar a partir da igualdade de condições entre os homens (o que é bem visível na extraordinária oposição internacional aos governos que ousam enfrentar o imenso séquito de carreiristas, lobbystas e parasitas que enriquecem há gerações às custas do erário).

É o conservadorismo, por fim, que faz da política a antipolítica, na medida em que inaugura na esfera pública a vontade privada, eliminando o aspecto criador, inovador, na condução dos assuntos relativos à vida social. Uma vez que a própria vida social é eliminada da política, resta apenas a mimetização da mesma, uma versão grotesca e demagógica que insiste em controlar as nossas vidas sob o pretexto de combater todas as formas de controle.

Logo, é somente sem o conservadorismo e sua inseparável defesa de valores anteriores à democracia que os indivíduos podem construir uma nova sociedade com novos processos, novas sociabilidades, novas formas de experimentação e vivência. De movimentos sociais à política institucional.

Em todas as épocas, as revoluções de que a democracia necessitou para construir regimes melhores sempre pressupôs suprimir todas as formas de conservadorismo.

Por que hoje seria diferente?

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