quinta-feira, 30 de outubro de 2008

PENSAR NO LOCAL, AGIR NO GLOBAL

Em 10 de janeiro desse ano eu me desligava do jornal A Tribuna, onde trabalhei por cinco longos anos nas funções de repórter, editor assistente e editor-chefe, geralmente de forma cumulativa. Em bom português: assobiava e chupava cana ao mesmo tempo.

O cotidiano da redação d'A Tribuna é ditado por seu dono. Eli Assem de Carvalho é um empresário como muitos em Rio Branco. Descumpre direitos trabalhistas, é autoritário, atrasa o pagamento dos funcionários, pratica o famoso “caixa dois” (paga um valor na carteira e outro “por fora” para sonegar impostos e a contribuição sindical) e não tem o menor escrúpulo de transcrever textos de terceiros sem o devido crédito.

A trajetória dessas transcrições, aliás, é curiosa. De sua sala, nas dependências da Gráfica Globo, Assem costuma telefonar para a redação onde geralmente um repórter o atende. “Venha aqui na minha sala!”, diz o chefe, desligando abruptamente. Ao adentrar o cômodo o jornalista – ainda irritado com a falta de educação – é apresentado a várias folhas de papel A4 com matérias extraídas da internet. “Pegue esta foto aí, mexa nesse texto, tire essas frases, faça assim e não faça assado”, diz ele, enquanto rabisca furiosamente cada página. Quase sempre, as datas e nomes dos autores são os primeiros itens suprimidos.

Quem discorda é imediatamente apresentado à ladainha preferida do empresário: “Eu pensava como você. Sabe o que eu fiz? Abri um jornal pra mim”, costuma dizer, como numa auto-justificativa torta para depois arrematar: “Olhe, quem manda aqui sou eu. Eu comprei, paguei, é meu. Faça como eu estou mandando!”.

Essa prática rendeu à Tribuna várias advertências, inclusive de jornalões como O Globo e o Correio Braziliense – este chegou a enviar vários ofícios exigindo que parassem de reproduzir seus textos sem os nomes dos autores ou mesmo da fonte.

Karl Marx, na parte introdutória de “Para a Crítica da Economia Política”, escreveu algo que os jornalistas acreanos deveriam gravar numa placa e ter sempre à vista:

“Na produção social da sua vida os homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas da consciência social. O modo de produção da vida material é que condiciona o processo da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência.”

Ora, é possível fazer um bom jornalismo sob as relações de produção apodrecidas anteriormente citadas? Creio que não. Creio que não é possível sequer pensarmos na possibilidade de um jornalismo, qualquer que seja, uma vez que a produção da consciência jornalística se dá em uma direção totalmente antiética, absurda, doentia e autoritária, apesar do enorme esforço em contrário dos trabalhadores que suam camisas e queimam neurônios para produzir os jornais que serão lidos no dia seguinte (posso dizê-lo com amplo conhecimento de causa).

Por que isso acontece?

Numa empresa privada um jornalista tem dupla função: produzir mercadoria de consumo diário (as notícias) e, enquanto contra-poder, cobrar e fiscalizar os interesses da sociedade perante os demais poderes. Há, portanto, uma contradição entre duas dimensões: a privada e a pública. A primeira almeja o lucro. A segunda, o interesse social.

Acontece que, como notou Marx, as relações de produção condicionam todo o resto e qualquer repórter idealista ou conservador, investigativo ou desorganizado, autodidata ou diplomado está submetido a elas, incondicionalmente.

No Acre, por motivos históricos e geopolíticos, a totalidade das relações de produção pariu uma base econômica profundamente dependente do governo. O dinheiro público mantém todas as empresas de comunicação, a ponto destas dedicarem aos seus amos os mais servis afagos, falsos elogios, exageros aforísticos e outras aberrações burguesas que se vêem diariamente.

Ou seja: os jornais adulam exatamente quem deveriam fiscalizar pela simples razão de dependerem economicamente dele. Em nome disso matérias são antecipadamente censuradas, fotografias editadas e empresários... bem, empresários que ficam cada vez mais ricos enquanto nas redações, a contragosto ou nem tanto, jornalistas produzem um Acre virtual, eletrônico, atraindo cada vez mais turistas às belas obras do centro de Rio Branco...

Infelizmente alguns repórteres crêem nessa lógica da eficácia governamental que a tudo conduz mansa e placidamente, sem sobressaltos, sem violências, sem desvios nem furtos e sem a produção social da idiotia – embora a curta história dos Estados e dos poderes civis que o precederam brade justamente o contrário, inclusive em âmbito local. É evidente que tal posicionamento está tão profundamente entranhado pelas relações de produção que o geraram que sequer consegue diferenciar interesse público de interesse do Estado.

Por isso mesmo é preciso recriar novas relações de produção no jornalismo acreano. Somente assim será possível recriar o próprio jornalismo e os próprios jornalistas como novas consciências sociais. Novas formas de comunicação mais democráticas e eficazes já estão disponíveis. A grande pergunta é: o que fazer?

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O QUE FAZER?

Há cerca de dois anos isso seria impensável, mas hoje, com a Web 2.0 e as várias agências independentes que pululam na rede mundial de computadores, uma nova forma de globalização da informação tornou-se possível: uma imensa rede de notícias locais não só espalhadas por todo o globo, mas produzidas para esse público, e, melhor, fiscalizada por ele.

Trata-se de uma revolução na forma de fazer notícia: antes os textos eram produzidos para um público local mais ou menos definido. O surgimento dos blogs de notícias manteve essa tendência, herdada dos jornais impressos, ainda que a internet permitisse chegar a um público maior. A nova forma de interatividade, por outro lado, produz notícias locais inteligíveis em qualquer parte do mundo, sempre ao lado de outras notícias locais, mas de outras regiões e outros autores.

Esse novo formato permite inverter o conhecido lema da famosa Agenda 21, “Pensar no global, agir no local”, criado no contexto de uma sociedade que ainda iniciava as discussões sobre um novo modelo de desenvolvimento. No Acre os blogueiros Altino Machado e Toinho Alves foram os expoentes desse método, marcado por conteúdos locais e algumas referências a realidades e contextos nacionais e internacionais.

O novo paradigma aponta justamente o contrário. Os textos continuarão tratando de realidades locais, mas, como serão dirigidos a um público internacional, serão contextualizados com a realidade mundial e vão aparecer sempre ao lado de outros textos também locais ou regionais, mas de outras realidades e de outros autores.

Será possível a um jornalista colombiano, por exemplo, denunciar a ação violenta de empresas bananeras em pequenas comunidades camponesas, ao lado de um texto acreano sobre a venda de toras de madeira para o mercado mundial e outro texto boliviano sobre a marcha dos povos indígenas pela aprovação de sua Constituição Bolivariana.

“Pensar no local, agir no global”, essa é a nossa cara do jornalismo. Um jornalismo-mundo, mantido por redes de jornalistas engajados na transformação da opressiva realidade-mundo dos nossos dias.

Algumas agências de notícias da internet já trabalham nessas novas relações de produção. Iniciei há cerca de três meses uma experiência nesse sentido com a Agencia ANNCOL – http://anncol.eu -, que tem correspondentes em vários países de língua espanhola da América Latina, além da Europa e da Oceania. Na mesma linha também trabalham as agências Prensa Latina – http://www.prensa-latina.cu/ -,REL-Uita - http://www.rel-uita.org/ -, ABP - http://www.abpnoticias.com/ e outras. No Brasil destacam-se as agências Adital – www.adital.com.br - e Correio da Cidadania - http://www.correiocidadania.com.br/.

A linha editorial em todas essas agências tem orientação única: informar aos trabalhadores de língua espanhola o que ocorre nos demais países, próximos ou distantes, de uma perspectiva de quem vive no lugar, mas escreve para um público mundial.

Esta inversão permite, por exemplo, que indígenas da Bolívia, guerrilheiros da Colômbia, trabalhadores de fábricas ocupadas da Venezuela e outros tracem estratégias de sobrevivência para a crise econômica (esta que vivemos é a crise financeira) que se avizinha.

No Acre os resultados desse jornalismo linkado e que, finalmente, olha para o Oeste ao invés ao Sudeste, permitirão uma interatividade maior entre os trabalhadores e uma fiscalização efetiva dos governos (o que a imprensa tradicional, como se sabe fartamente, é incapaz de fazer).

Em breve a crise exercerá sua pressão sobre os movimentos sociais, governos e empresas que, por sua vez, pressionarão os trabalhadores. O comércio ficará mais caro. Haverá demissões. A violência aumentará. A imprensa atual se tornará ainda mais bovina. As ocupações de terras vão voltar. As empresas internacionais vão pressionar a Amazônia.

Até lá é preciso que esse jornalismo crie pontes com as rádios públicas para chegar aos seringueiros em suas colocações. Na zona urbana, onde ainda há famílias morando sobre esgotos e outras que perdem o pouco que têm nas enchentes, a imprensa precisa reaprender a se indignar com as tragédias humanas e denunciar o descumprimento de leis e tratados internacionais, nacionais e locais, exigindo justiça e fornecendo ao povo as ferramentas para sublevações populares.

É desumano, imoral e antiético negar ao povo acreano o verdadeiro fenômeno que produziu a sua própria identidade histórica, além de todas as nossas periferias: a luta de classes.

“Pensar no local, agir no global”. Esta é a grande tarefa do jornalista do Século 21.


A foto é do blog do deputado estadual Luiz Calixto e mostra o complexo onde funciona, da direita para a esquerda: parte da sede d'A TRIBUNA (a parte branca), a Gráfica Globo (prédio maior) e a Rádio Alvorada (com sua antena ao fundo). Todas pertencem a Eli Assem de Carvalho.

Clique aqui para saber mais sobre o relacionamento desse jornal com a Secretaria Municipal de Saúde (Semsa), simbólico até na fotografia...

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