sexta-feira, 24 de junho de 2011

POR QUE O CRISTIANISMO NÃO PRODUZ PAZ SOCIAL

Apresentadores de programas policiais de TV compartilham vários "cacoetes". Um deles é relacionar os crescentes índices de criminalidade com a suposta descrença do povo. De fato, é bastante difundido o credo de que o aumento da violência estaria relacionado à "falta de Deus no coração". Surfando na onda de religiosidade e moralidade advinda desta revelação, desde os anos 60 as igrejas realizam enormes eventos públicos: "cruzadas", "festividades" e as recentes "marchas para Jesus".

É um equívoco. Primeiro: o Cristianismo é não só a forma religiosa predominante na nossa sociedade há pelo menos 2.000 anos, como é a base histórica da moralidade mundana ocidental. A tal ponto que, ao longo da história, outras religiões como o Budismo, o Hinduísmo, a Umbanda etc, tiveram que "adaptar" suas narrativas como estratégia para arrebanhar seguidores.
Isso significa, entre outras coisas, que se o problema da violência advém da falta de Deus nos corações, o resultado é que apesar de todas as tentativas (e faz parte do arcabouço cristão a idéia de que as gerações anteriores eram menos pecadoras que as atuais), o Cristianismo vem falhando em transmitir a sua "essência" há pelo menos dois milênios seguidos.

Como o próximo passo seria questionar se não haveria algo de intrinsecamente violento no próprio edifício teológico do Cristianismo, urdiu-se ao longo dos séculos uma saída estratégica: o argumento de que "ter Deus ou Jesus no coração" seria independente de ser cristão ou mesmo da predominância da religião cristã.

Assim, "ter Jesus" ou "viver na presença de Jesus" seria, na melhor perspectiva kierkegaardiana, uma outra outra instância somente alcançável pela experiência pessoal e por isso mesmo não se prestaria às problematizações filosóficas, vendidas aí como "especulações de sábios sem Deus".

Esta operação se conhece em Filosofia como "fuga para a frente": além de não responder o questionamento sobre a duvidosíssima conexão entre descrença religiosa e violência, elege-se uma saída teológica, ou seja, um argumento com o qual só se pode dialogar quando se reconhece como verdadeiros os próprios argumentos que se pretendia questionar. Isso, evidentemente, anula o questionamento e a problematização cai numa circularidade que enquadra o próprio questionador (daí a figura do "sábio tolo").

É desnecessário frisar, no entanto, que deslegitimar qualquer questionador em um debate não elucida o questionamento por ele proposto. O que nos leva, de cara, ao segundo motivo para o título da postagem de hoje: o Cristianismo, ao propor um desnível entre pecadores e salvos, entre mundo e igreja (do grego ekklesia, "os chamados"), dentre outras combinações binárias, ensina que há uma faixa da população que por suas convicções religiosas é moralmente superior às demais. É o contrapasso daquilo que é uma das principais conquistas da Era Moderna: a igualdade formal dos seres humanos perante as leis.

Todo ser humano é um ser moral, porque dá às coisas valores simbólicos. Mas a idéia de que há um código moral superior a todos os demais, cujo fundamento é o "plano de Deus para o mundo" e que como vimos não pode ser compreendido pelos "sábios tolos", serve como uma luva não só para a ascensão política dos líderes religiosos, mas principalmente de motivação psicológica para uma gama de comportamentos discriminatórios: desde que não estejam previstos no "plano de Deus", comportamentos sexuais, alimentares, linguísticos, de moda e até de assepsia pessoal podem tornar-se justificativas para que os filhos de Deus vejam em alguns grupos de "não-salvos" alvos ideais para práticas definidas por um famoso estrangeirismo: bullyng.

Como pode uma religião cuja mensagem principal é a paz acabar estimulando precisamente o seu contrário, isto é, a violência?

A resposta está no terceiro e último motivo pelo qual o Cristianismo não pode promover a chamada "paz social": não pode haver paz sem autonomia para os indivíduos. Da mesma forma que é impossível um cônjuge exigir que o outro o ame e isso passar a ocorrer de fato, tudo o que se refere à vida social só é realizável com liberdade de julgamento e crítica.

Por isso a paz, o fim da violência, não é possível tentando amar o próximo como condição para ser salvo. O máximo que se consegue em tal empreitada é alguma hipocrisia, já que ninguém ama por decreto.

O tal próximo não é "meio" para se conseguir outra coisa.

O próximo não é alguém a ser amado (com ou sem "decreto") ou adulado. O próximo é outro ser humano diferente, por vezes exótico, com outras referências de vivência e idéias, mas nem por isso inferior ou superior a nós ou a qualquer pessoa.

A democracia, a aventura política, só é possível quando os indivíduos reconhecem características comuns em meio a tantas riquezas referenciais. Comer, beber, ter saúde, uma vida digna e bons amigos são exemplos dessas características comuns. A boa política, portanto, é aquela em que os indivíduos se reconhecem como iguais apesar das diferenças e se organizam para maximizar os ganhos coletivos. Segundo a vontade de Deus? Não. A vontade de Deus antepõe um obstáculo na busca pelo interesse comum. Em vez de buscar o útil para a coletividade, busca-se cumprir uma vontade tida como superior - a dita Vontade de Deus.

Vale relembrar que esta pode ser literalmente qualquer coisa. Salvar os homens, instaurar o reino de Jeová na Terra, viver no Espírito etc são noções tão adaptáveis e líquidas quanto a de "amar ao próximo". Basta, novamente, dois ingredientes: líderes carismáticos e rebanhos devotados.

Aos mais céticos que eu, darei um exemplo: Por que brandir o bordão da "perseguição ao povo de Deus" continua tão forte hoje, mesmo sendo os cristãos (evangélicos) não apenas mais numerosos - as próprias marchas para Jesus o provam - mas também hegemônicos no imaginário social, tendo a simpatia da imprensa, o entusiasmo de muitas autoridades e a a colaboração dos não-cristãos?

Esta perseguição existe de fato? Quantos cristãos foram impedidos de exercer sua religião, foram torturados ou morreram por sua crença nesta semana?

Simples: contrapor cristãos e não-cristãos sempre foi muito útil para a ascensão meteórica de aproveitadores na política. É uma mina de ouro, responsável pela eleição de muita gente, inclusive no Acre. Felizmente nesse caso a total inexistência de tal campanha difamatória contra evangélicos evidencia por si mesma o "ato falho" desses políticos de última categoria. Felizmente, ainda, a disposição de mobilizar os medos das pessoas para tirar proveito disso revela muito sobre o caráter de quem o faz.

Seria trágico se não fosse cômico - ou o contrário, se quiserem...


FOTO: (Gleyciano Rodrigues/Agazeta.net) A simbologia de Israel está para os cristãos como Meca está para os muçulmanos. A Marcha para Jesus em Rio Branco, no entanto, desfila a bandeira do Estado israelense criado em 1948 pela Assembléia Geral das Nações Unidas. Sob esta bandeira, Israel é acusado de uma série de crimes contra a humanidade, como uso de fósforo branco contra sitiados, genocídio de crianças e idosos em aldeias palestinas, tortura de presos e uso de material bélico proibido pela Convenção de Genebra. Para saber mais a respeito, clique aqui.

Um comentário:

Pr. Marcelino Freixo disse...

Me permita fazer uma correção. Pelo Evangelho, a salvação do homem é um ato de graça, não o resultado do amor ao próximo ou mesmo a Deus. O amor a Deus e ao próximo é o resultado de ter a certeza dessa salvação, conforme está escrito em Efésios 2:8-9: "Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie". Acho que isso invalida o argumento central do seu texto, que o cristianismo ensina que o amor é condição para se ter algo.