quarta-feira, 22 de junho de 2011

RAZÃO TUTELADA E JORNALISMO NO ACRE

Já pensou o que aconteceria se o Movimento Abolicionista, que ocupou grande parte da crônica social brasileira na primeira metade do século XIX - e rendeu uma explosão de movimento criativo, das artes plásticas à literatura - se tivesse fiado na capacidade de diálogo do Estado para acabar com o horror da escravidão?

Ou se o movimento Diretas Já, ao invés de invadir as ruas das principais metrópoles brasileiras, resolvesse aguardar o momento mais propício num clima de diálogo e cordialidade com a "difícil situação estrutural" do "Estado revolucionário" brasileiro do final dos anos 80?

Já pensou o que haveria se, pela mesma época, o movimento de seringueiros do Acre resolvesse abrir mão dos empates em solidariedade à difícil missão dos governantes de reestruturar a máquina pública após 20 anos de ditadura?

Se por algum momento a crise da monarquia brasileira (e européia) fosse vista com um olhar um pouco mais solidário, a revolução republicana estaria aguardando até hoje. Da mesma forma a independência do Brasil. A revolução acreana também.

Todas as lutas que permitiram ao funcionalismo público algum tipo de conquista seriam facilmente anuladas se todos se permitissem ver, no meio do processo, parte de um Estado sempre muitíssimo comprometido com a paz social, com o diálogo, com políticas que atendam toda a sociedade e promovam a inclusão.

Sempre há quem defenda esse discurso, em cada época dos momentos históricos citados. Ler os jornais de outras décadas, especialmente no caso do Acre, é basicamente conferir como diferentes argumentos podem servir à mesma causa: o tutelamento da razão pelo poder.

Anular a divergência pública para tornar sociedade e Estado o mesmo discurso sempre foi a grande ambição de regimes totalitários (daí o nome), incluindo nazismo e fascismo. Estimular essa conduta é não somente criminoso, mas profundamente sintomático da nossa miséria política: na curta história do Acre - que em vez de história tem personagens míticos e heróis, como na Mitologia Grega - nunca houve espaço para a produção da política pelos indivíduos. As decisões cruciais para a política sempre vieram "de cima" e movimentos contestatórios sempre foram vistos com profunda desconfiança, medo e até agressividade.

No entanto, apelar para esse tipo de política é sempre muito rentável: garante que todos fiquem nos seus devidos lugares, dominadores e dominados. Ambos defendendo a ordem social como direito inato, seja como vontade de Deus, seja como compreensão contextual, faz com que a ordem social permaneça inalterada por tempo indefinido.

Claro que não estou me referindo mais ao passado, e sim aos nossos dias, quando cada vez mais questões políticas são "resolvidas" com doutrinas religiosas. Quando, contra problemas de ordem civil a sociedade coloca convicções dogmáticas - e o Estado não só aceita como estimula essa prática, como no recente discurso do governador Tião Viana, ao afirmar que a sociedade seria regida por leis e valores cristãos.

A democracia é o espaço da produção do possível? Ou é o tutelamento da razão? No Acre, ensina-se cada vez mais a segunda opção, com os argumentos mais cínicos. Como este, retirado do editorial do jornal A Gazeta de hoje:

Por isso mesmo, vale insistir que o Governo não pode se deixar engessar apenas por movimentos reivindicatórios de reajustes salariais. Dialogar, negociar o que é possível e justo sim. Porém, sem perder de vista que há demandas urgentes da sociedade que precisam ser atendidos e isso o atual Governo vem fazendo com acertos.

A idéia de que "movimentos reivindicatórios" (realizados por necessidades reais dos indivíduos, relacionados à comida, moradia, vestuário etc) possam "engessar" o Poder Estatal pode parecer absurda. Mas tem razão de ser.

A organização de uma sociedade no meio da floresta por puros motivos econômicos, destinada a exportar monocultura para os Estados Unidos, produziu no Acre um tipo peculiar de esfera pública fechada, hierarquizada, e por isso dependente da alienação das pessoas. Incontestável, a política tornou-se o espaço da autoridade pessoal. Isso ocorreu em duas fases seguidas. A primeira foi a do coronelismo de barranco, onde os patrões tinham poder de vida e morte sobre os seringueiros. A formação histórica desta fase foi fartamente documentada pelo genial historiador Pedro Martinello.

A segunda, cujo clímax vivemos hoje, é a do coronelismo paternalista. Nela, o Estado não faz mais política. O que se faz é o "cuidar". O Estado deixou de ser a instância de pública de discussão e deliberação... para virar nosso pai.

Eis aí a razão, mas... isso não deveria ser assustador por si só?

A defesa intransigente do tutelamento da razão, como se vê na imprensa acreana hoje, não deveria causar alguma espécie? Nem que fosse pelo coro com os mais sombrios fantasmas do passado, que alguns juram ter combatido?

Não assusta, não causa espécie em ninguém. E isso também é sugestivo, especialmente se levarmos em conta que, tal como há 100 anos, os jornais acreanos dependem fundamentalmente de verba pública para sobreviver.

Encontramos, portanto, um elo entre as duas fases do tutelamento da razão na história acreana.

Sugestivo. Muito sugestivo.

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