terça-feira, 26 de agosto de 2008

A BARBÁRIE NOSSA DE CADA DIA

No programa "Gazeta Alerta" de hoje:

De Brasília (DF), o repórter Mariano Maciel informa por telefone que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) acatou um pedido do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Estado do Amazonas e enviará tropas do Exército Brasileiro para reforçar as eleições em Manaus.

De volta ao estúdio o apresentador e meu amigo Edvaldo Souza comenta:

- Evidentemente, aqui no Acre está tudo tranqüilo, o processo eleitoral está transcorrendo normalmente. Está transcorrendo normalmente. Cada candidato e cada cabo eleitoral está vendendo o seu produto e correndo atrás dos votos, e é assim que ocorre numa democracia, não é mesmo, Mariano?"

Maciel confirma. O tema se esgota.

O BG (música de fundo) muda e o apresentador dispara:

- Comunidade faz protesto contra violência no trânsito. Imagens!

Surge a repórter Lenida Cavalcante, ladeada por crianças e adultos segurando cartazes em um ato público no bairro Conquista. São moradores, gente simples que perdeu amigos, amores ou filhos em alguma tragédia automobilística. Um dos depoimentos é constrangedor:

- Já morreram crianças e adultos aqui. Nessa rua Padre Cícero [a câmera mostra a rua] passa caminhão pesado e eles não dispensam nada. A criança que estiver no meio eles atropelam mesmo, não estão nem aí!

A imagem corta para Edvaldo. Ruborizado, nervoso, o apresentador comenta a participação de crianças no ato público. Pede providências. Critica a falta de sinalização na via. E lembra de um projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional que deve transformar o assassinato no trânsito em homicídio doloso (quando há intenção de matar).

Fim do bloco.

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Escolhi essa passagem de um programa de uma hora porque quero comentar algo que, se por um lado é muito próprio do Jornalismo, por outro é o seu maior problema: a natureza limitada da informação condicionada ao fato imediato.

No Jornalismo quanto mais se contextualiza, quanto mais se conecta um fato específico à realidade em que o mesmo está inserido, mais se descobre que o fato narrado não passa do efeito de outros fatos que lhe são anteriores. "O fato é um aspecto secundário da realidade", escreveu o poeta Mario Quintana.

Numa época em que a informação é mercadoria cuja circulação e consumo estão condicionados não só aos produtos que veiculam, mas ao interesse da empresa jornalística responsável por essa veiculação, não é de estranhar que as notícias sejam as mais factuais possíveis. É uma questão grave, mas que se torna incontornável ao somar-se a detalhes técnicos como tempos de exibição, anúncios de patrocinadores e melindres políticos, além, é claro, às cosmovisões e preferências pessoais de repórteres e apresentadores.

A complexa interação desses fatores é o que viabiliza o tipo de Jornalismo praticado em determinada comunidade.

Vamos tomar como exemplo as notícias veiculadas acima. No primeiro caso uma contextualização simples informaria que, além de Manaus, o Exército atuará - também a pedido das prefeituras - em Barcelos, Boca do Acre, Humaitá, Manacapuru, São Paulo de Olivença, Urucará e Itacoatiara. Acrescentaria ainda que das 62 cidades amazonenses, 49 pediram reforço das Forças Armadas. E que, ao todo, quatro dos sete Estados da Amazônia reivindicaram o mesmo (Amazonas, Amapá, Pará e Tocantins).

No Pará, o primeiro Estado atendido, haverá reforço militar em nada menos que 83 municípios.

Mas tudo bem se o Acre está bem, não é? Não, não é por aí...

A violência que levou prefeitos e governadores a requisitar a presença das Forças Armadas para garantir a realização da chamada "festa da democracia" é a mesma que, nas nossas ruas, mata crianças e adultos cujo único erro foi cruzar uma rua ou avenida no instante em que algum automóvel passava em alta velocidade (o leitor experimente cruzar uma faixa longe de um semáforo, em qualquer ponto de Rio Branco e a qualquer hora, e se sobreviver me conte a história).

Nos dois casos, uma imprensa analítica e livre de tantas amarras abordaria o fenômeno social da violência - Edvaldo de vez em quando parece tentar puxar essa discussão, mas, sem tempo e limitado pelas próprias determinações do jornalismo acreano, acaba incorrendo no mesmo equívoco de tantos apresentadores de programas policiais Brasil afora: apelar para o poder repressivo do Estado, um poder que tem como tática combater a violência com a própria violência.

É desnecessário dizer que essa medida é absurda, mas fundamental acrescentar que ela agrava as tensões de classe social das quais se origina a violência em sua acepção mais ampla: aquela que viola o ser humano, que o reduz à condição de objeto (o homem-voto, por exemplo) e que não vê na escalada da violência o resultado inevitável da coisificação do sujeito e da mercantilização da vida.

A imprensa precisa entender que a visão da sociedade como um ser meramente mercantil é o que gera a idéia estapafúrdia de que, mesmo na vida política, alguns naturalmente ganham e outros perdem. Raciocinar dessa forma não é só antidemocrático, é afirmar aquilo que a todo custo se nega: que o motor da sociedade é uma intensa e frenética luta de classes, raiz fundamental da sua divisão e da sua violência (e que somente com repressão é possível resolver ambas).

Na imprensa, meio de comunicação necessariamente coletivo, esse raciocínio da "cidadania capitalista" é bem mais danoso. Danoso a ponto de promover a própria violência como regra social, ao invés de denunciá-la e combatê-la - dever de todo repórter. Daí a escalada do crime. Daí os assombros dos apresentadores. Daí o rubor e a vergonha que agora mesmo toma as nossas faces, pois, de repente, nos damos conta de que esse ciclo que alimentamos nos fará conviver com a intensificação da violência até o fim dos nossos dias.

Fica a reflexão. Que ela não seja só minha, mas sua também.

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