segunda-feira, 4 de agosto de 2008

A HISTÓRIA COMO FARSA

Elas foram criadas no final da década de 50, como parte da organização popular por uma democracia mais participativa, e tiveram papel importante na luta contra a ditadura militar. Chegaram no Acre em meados da década de 70, aliando-se às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), às associações de produtores e a partidos políticos para defender os direitos dos excluídos e denunciar assassinatos nos seringais (os dois últimos grandes capítulos no processo de acumulação primitiva da burguesia latifundiária-improdutiva local).

Cerca de duas décadas e meia depois, as associações de moradores de Rio Branco não só tiveram a sua participação pública totalmente esvaziada como também desempenham, algumas vezes, papéis ridículos, servis e farsantes - um triste arremedo de tudo o que já representaram para a vida pública e para a consciência democrática.

A mais recente demonstração dessa decadência veio a público ontem, no programa TV 5 Notícias, apresentado pelo jornalista Demóstenes Nascimento. O entrevistado foi o presidente da Associação de Moradores do Bairro Seis de Agosto, Ozéias Silva, que entre outras baboseiras sem rumo nem prumo saiu-se com estas (a entrevista era sobre o 104º aniversário do bairro Seis de Agosto):

APRESENTADOR - Então quer dizer que a programação vai começar às 5 da manhã e vai terminar às 22 horas, é isso?

OZÉIAS - Isso mesmo, já vamos começar com a tradicional queima de fogos, que é para a população acordar com o barulho e saber que aquele dia é um dia especial. Dia de festa. E se preparar para participar com toda a comunidade dessa grande comemoração.

Comentário meu:

É óbvio que vai todo mundo pular da cama e correr para ver os estrondos de fogos de artifício, às 5 horas da manhã (tecnicamente, 4 horas da madrugada!). Afinal não basta somente ouvir, é preciso ver, participar da macaquice - nem que seja na marra! Os incomodados, aqueles que acham que essa política de pão e circo não muda, nem ao menos toca os graves problemas sociais que o bairro atravessa, esses que se mudem...

(...)

APRESENTADOR - Fique à vontade para convidar as pessoas para participar dessa comemoração. (!)

OZÉIAS - Então, eu quero convidar todas as pessoas que estão nos assistindo para que participem conosco. São muitas pessoas pobres, Demóstenes, muitas pessoas carentes que às vezes não têm uma forma de lazer ou de diversão e por isso essa festa é uma forma de dar a essas pessoas um lazer, uma diversão, para que elas participem e venham conosco comemorar o aniversário da comunidade.


Comentário meu:

Recentemente andei conversando com o Aldo Nascimento, do blog
Língua, sobre os efeitos do processo de enxertia macroeconômica que resultou na sociedade acreana. Como se sabe, o povo do Acre remonta a duas grandes migrações, ambas patrocinadas pelo poder público (a primeira, no final do século XIX, pelo Governo da Província do Amazonas, e a segunda no governo Vargas, pela famosa política de esforço de guerra promovida pelo Semta).

Nossa conclusão foi que o enorme peso da máquina estatal na criação da sociedade e na divisão local do trabalho (coisa que, no capitalismo da época, cabia à iniciativa privada) acabou engendrando o que se pode chamar antropologicamente de uma "sociedade verticalizada". Aqui as relações de produção não foram resultados de expropriações de camponeses por uma burguesia mercantil como parte de um processo de acumulação primitiva.

A acumulação ocorreu, mas não só foi originada como também se desenvolveu amplamente e em todos os campos (inclusive no campo mítico, por meio de mitos fundadores poderosos) devido à participação direta do Estado, o poder público.


Vem daí não só a histórica dependência da burguesia local em relação aos aparatos de governo, como também a subserviência, permeada de conhecidas histórias de servilismo, entre dominadores e dominados.

Ora, com o corte social tão bem definido e com os lugares de poder organizados de tal forma que as esferas pública e privada fazem parte da mesma coisa (ou seja, um enorme mecanismo de poder simbólico), segue-se que a sociedade daí originada não tem saída senão reproduzir, no sentido de Bourdieu, a lógica da dominação do mais fraco pelo mais forte em todos os demais campos geridos pela política: a família, a escola, os relacionamentos interindividuais... o bairro...


Ozéias Silva, com esta idéia de propor uma "diversão para os pobres" com o objetivo de dar-lhes algo como que um alívio, um afago, revela-se fruto dessa sociedade verticalizada. Tal comportamento manifesta a lógica social na qual está inserido e que percorre todo o inconsciente coletivo acreano. Uma lógica herdada de um passado de semi-escravidão nos seringais e que se manifesta na política, nos relacionamentos e até nas festas.

É uma lógica que, cúmulo do desrespeito à cidadania em sua acepção mais ampla, considera que a pobreza deve ser algo como uma dor de cabeça: tomando um relaxante, passa. E que esse estado de coisas não é o resultado de políticas coronelistas (leia-se: verticalizadas), mas apenas uma conseqüência indesejada do nosso próprio "subdesenvolvimento".

A lástima não é apenas notar essa auto-imagem no inconsciente coletivo acreano, mesmo que ela tenha sido engendrada cuidadosamente, minuciosamente, pela burguesia estatal e privada que até hoje manda e desmanda no Acre, para condicionar o povo à inércia e mascarar a horrenda verticalização social que aqui se formou desde os primórdios.

O horrível não é somente perceber que essa política de seringalistas é mantida ainda hoje para sustentar uma casta de servidores públicos e empresários sanguessugas às custas da leishmaniose, malária, dengue, loucura e todos os espectros que a miséria pode ganhar na selva e nos bairros periféricos de Rio Branco: o capital que movimenta a roda da exploração e da miséria humana é dinheiro público!

Lastimável e horrível é perceber que essa estética das relações verticais de poder foi assimilada socialmente. É perceber que a principal característica desse modelo - a imposição de valores autoritários como se fossem coletivos e democráticos - ficam evidentes e inegáveis em uma simples queima de fogos de artifício, às 5 horas da manhã, desconsiderando a sensibilidade dos tímpanos de bebês, idosos, gestantes e doentes - e de todos os que nesse horário, por qualquer razão, preferem dormir um pouco mais.

Lastimável e horrível é constatar que uma associação de moradores, que tantos serviços já prestou na luta democrática, se utilize de expedientes autoritários e desajeitados para lidar com "a pobreza". Como se esta não fosse conseqüência histórica direta, uma exigência, um pressuposto mesmo da verticalização da sociedade. Verticalização que já foi combatida pela própria associação bem antes dela tornar-se um dos seus agentes.

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